27 de julho de 2006

Abaixo o primeiro parágrafo do texto da orelha do livro de José Saramago, Memorial do Convento, em sua 14a. edição pela Bertrand Brasil:

Diz-se que o português Pedro Álvaro Cabral descobriu o Brasil no ano de 1500. A gente vai acreditando porque nesta altura dá muito trabalho impugnar. Mas fica aquela dúvida: O Brasil estava perdido? (Os piadistas poderão dizer que estava.) Se fomos mesmo descobertos por portugueses, quando é que nós brasileiros vamos retribuir a gentileza descobrindo Portugal? Porque a verdade chocante é que para os brasileiros de hoje Portugal é tão ignoto como eram estas terras para os europeus até fins do século XV.

Trecho de "Para descobrir Portugal", de José J. Veiga.

22 de julho de 2006

Também fazemos números de circo sabe, daqueles números de transmissão de pensamento, magias e outros mistérios. Curioso, diz Vicente, pensei que fossem mais sérios, mais do tipo religioso. Não há diferença diz Valentim-Valdemar, religião e circo têm estado muito iguais. Nos últimos anos, sim, não só, já de há muitos anos, as pessoas esperam maravilhas fáceis de um lado e do outro, esperam uma leve suspeita de que existem outras realidades sem terem de se incomodar a aprofundar o assunto, esperam que tudo se resolva, que as pontes salvadoras sejam estabelecidas, que os tributos sejam pagos, com aplausos e esmolas. Compram o bilhete para, um dia, irem para um céu qualquer. Como quem vai ao circo, entendo, diz Vicente, e no circo, além dos seus prodígios, o senhor discursa? O menos possível, demonstro o mais que posso porque a palavra está muito gasta, tão desvalorizada quanto o dinheiro, os políticos inflacionaram tudo, as pessoas não conseguem aproveitar mais do que uma ou duas palavras numa frase de vinte ou trinta, é um valor muito baixo, quero dizer, muita palavra para pouco aproveitamento.

Trecho de "O chão salgado", de Maria Isabel Barreno.

11 de julho de 2006

O Sr. Finkelstein estava caminhando para a trilha de cascalho quando apareceu um velho de barba encaracolada. Ele sabia que o velho era um dos que viviam de rezar para os visitantes das sepulturas. O Sr. Finkelstein não gostava daqueles tipos, do mesmo modo que não gostava de nada que fosse formal e hipócrita. O homem estava todo de preto e encontrou Finkelstein quando ele passou por uma sepultura para pegar o caminho de cascalho. Perguntou se não podia fazer uma prece pela pessoa que o Sr. Finkelstein estava visitando.
- Não, obrigado, não precisa - disse o Sr. Finkelstein.
Parecia que o velho estivera observando o Sr. Finkelstein, já que apontou para o túmulo do pai dele e disse: - O senhor não deixou nada.
O Sr. Finkelstein olhou para a lápide e lembrou que deveria ter colocado uma pedrinha na sepultura para mostrar que tinha passado ali e feito suas homenagens. Nas outras lápides havia pedras de todos os tamanhos, como cartões telefônicos que resistem até a chuvas. Virou-se para o velho e disse em ídiche: - Ser ele me viu, sabe que estive aqui. Se não me viu, também não vai ver uma pedra.


Trecho de Focus, de Arthur Miller. Tradução de Beatriz Horta.

8 de julho de 2006

(...) o destino está a dar-me uma morte harmoniosa, com todas as coisas no seu lugar. Estou com a consciência da minha morte mas não tenho aquelas dores e aquelas agonias de que tanto ouvimos falar. Sabes, há uma luz que desponta e vejo que o sentido estético que dei à minha vida é talvez uma forma de moral que tanto me fez separar das religiões. A verdade é que não me pesa a consciência de ter feito alguma coisa feia. Estou a sentir que fica por cá o corpo, como quem cumpriu já o seu destino, mas aquilo a que chamam a alma está lúcida como nunca e sente que o seu destino não está cumprido. Ninguém sabe o que é isso porque a sua natureza é inexplicável como um mistério, e os mistérios só sabemos que existem mas talvez seja da sua natureza não serem decifrados, por isso eles exigem de nós uma aposta e um risco. É verdade que nunca a procurei mas nunca tive conhecimento de uma religião que claramente reconhecesse essa aposta e, a partir daí, procurasse viver os mistérios. Falam-nos como se tudo fosse evidente. Ora, evidente é o mistério, nunca a sua explicação. Acho que as religiões ligam de mais aos comportamentos e de menos à maneira como nos aproximamos dos mistérios. E talvez seja aí a morada de Deus...


António Alçada Baptista em O tecido do outono.

3 de julho de 2006

Quando há neblina na pequena estrada do nordeste e os passos de alguém, aí, se assemelham a um ruído de pedra em toda a solidão das colinas verdes rasantes ao mar, à tristeza, ao mar outra vez, porque é o mar que aparece permanentemente nos sonhos - o mar e o medo, um medo grandioso como a vida toda que desaparece em cada cadáver que alguém cataloga.

Francisco José Viegas, em As duas águas do mar.