29 de outubro de 2005

bom dia meu anjo

todos os outros e eu, esta cama enfermiça e benevolente. e o trecho em que me alojarei até o silêncio. os raios pipocando na crueza da madrugada. o dia borrado em dégradé gris. retinas como um desejo de céu. a quase-manhã um cadáver atravessado no caminho. uma pedra.
(whisner fraga)

28 de outubro de 2005

A volta do Eu lírico

Zeh Gustavo canta as pequenezas e as modéstias em belo livro de poemas

Augusto dos Anjos (1884-1914) chocou os poetas de sua geração ao publicar, pouco antes de sua morte, uma antologia de poemas intitulada Eu, legando a si mesmo, na contramão do vazio bem-comportado dos parnasianos, o papel principal em sua obra. O modernismo, em suas principais vertentes, confirmou este individualismo, substituído, no pós-modernismo, pelos versos abstratos e egocêntricos dos novos poetas. A forma ganha poder no concretismo, em detrimento do conteúdo. De um lado, o medo da exposição, e de outro o endeusamento fantasista da própria ignorância.
Zeh Gustavo, em seu Idade do zero, recém-lançado pela editora Escrituras, tenta resgatar em seus versos este Eu, lírico e deslocado, que se desviou de sua base, travestindo-se de crueza e mesquinhez, retrato do capitalismo acirrado, da globalização generalizante e de todas as transformações econômicas e políticas dos últimos anos.
Influenciado pelo poeta mato-grossense Manoel de Barros, Zeh Gustavo canta as pequenezas e as modéstias: ''Desencontrei quem gostasse demais do que eu/ de improduzir./ Tenho desencanto de grandes feituras''. Familiarizado com a sonoridade das palavras, o poeta e músico carioca, veterano do extinto Festival Xerox/ Livro Aberto, compõe versos de olho em boas canções: ''desespaço: vou assim;/ ar nenhum,/ sombra muita,/ carregado''.
Como todo bom poeta, Zeh Gustavo é também um experimentador, vê nas palavras não as amarras das regras, mas a possibilidade da transgressão. Ao alterar a transitividade de alguns verbos, o poeta carioca suprime a ação deste Eu retomado, tornando-o passivo na observação (ou encantamento) do mundo: ''Eu namoro com fantasmas/ Eles me brigam''. Nesta poesia, as palavras não são alheias à existência das coisas insignificantes.
Ao demonstrar suas opções de não ser, de não produzir, não comercializar, não se render, lembra da inutilidade da poesia (e a poesia deve ter alguma serventia?) para a sociedade contemporânea: ''Optei: não ser./ Seria um descalabro,/ uma piada''. E paradoxalmente o poeta não pode se calar. Ainda que lhe faltem interlocutores, o próprio egocentrismo é maior do que seu silêncio e ele quer se eternizar: ''E eu restarei, livrinho da silva''. É a injusta guerrilha que o artista encontra em seu cotidiano: a inutilidade da arte e a sua permanência, a sobrevivência de seu nome em detrimento de si próprio.
É a idade pós-humana, defendida por Edgar Franco em tese na Unicamp, que detecta a falência da criação, sugerindo novas simbioses, máquina-homem, arte-sistema produtivo, nas quais o ser humano, num esforço para inventar o novo e superar o medo, teria seu corpo transmutado e transformado em arte (concretizando assim a inutilidade da vida). Ou nas palavras de Zeh Gustavo: ''Meu corpo será meu verbo''. É preciso recuperar a atenção aos pequenos fatos, é aí que se encontra a saída para a condição humana: ''O homem:/ Sorria despretensões/ Jantava depois os sorrisos gastos/ Dormia antes''.
Zeh Gustavo semeia a poesia da negação. A síntese do livro pode ser encontrada no verso: ''Represento um EU negativo''. Com isto o poeta reafirma seu pacto com a inquietação, apresentando o seu individualismo (aqui representando exclusão) como um aliado no questionamento das ordens vigentes nas sociedades. Idade do zero narra uma nova gênese, a da reconstrução do ''Eu'', poeta e homem, diante de um mundo atocaiado por aqueles que o habitam. (Whisner Fraga)

Publicado no Jornal do Brasil, 28 de outubro de 2005.