27 de fevereiro de 2009

Dois escritores

Roberto Arlt e Joaquim Paço D'Arcos.

Tradução

Estou tentando me acostumar com o novo horário de trabalho. Lendo "Humano, demasiado humano", do Nietzsche, recordei-me que vinha traduzindo "O estrangeiro", do Camus e sempre desistindo. Não porque não seja possível transpor qualquer obra para outra língua, é que nenhuma tradução poderá vencer as inúmeras particularidades de cada idioma.

5. Má compreensão do sonho. - Nas épocas de cultura tosca e primordial, o homem acreditava conhecer no sonho um segundo mundo real; eis a origem de toda metafísica. Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo. Também a decomposição em corpo e alma se relaciona à antiquíssima concepção do sonho, e igualmente a suposição de um simulacro corporal da alma, portanto a origem de toda crença nos espíritos e também, provavelmente, da crença nos deuses: "Os mortos continuam vivendo, porque aparecem em sonho aos vivos": assim se raciocinava outrora, durante muitos milênios.

A tradução e a nota a seguir é de Paulo César de Souza:

"a suposição de um simulacro corporal da alma": die Annahme eines Seelenscheinleibes. A primeira palavra (do verbo annehmen, "aceitar, supor") é geralmente traduzida por "suposição" ou "hipótese"; mas a segunda, cunhada por Nietzsche, oferece alguma dificuldade, como atestam as diferentes soluções dos tradutores: "a hipótese de um exterior corpóreo para a alma", la creencia en una envoltura aparente del alma, l'ammissione di una forma corporea dell'anima, la croyance à une enveloppe apparente de l'âme, l'hypothèse d'un simulacre corporel de l'âme, the postulation of a life of the soul, the assumption of a spiritual apparition, the assumption that the soul can appear in bodily form.

Destaco a seguinte palavra: soluções. Sim, a tradução é um grande problema e acredito que sem solução razoável. Mais alguns comentários: Machado de Assis foi um tradutor medíocre. Monteiro Lobato também. O primeiro porque só conhecia bem o francês, o que o levava a traduzir para o português autores de língua inglesa a partir da versão francesa. O segundo porque não sabia mesmo traduzir. Para transpor uma obra para outro idioma, é preciso conhecer várias outras línguas, como fica implíticio no comentário do Paulo César. Há algum tempo fiz uma observação que melindrou um crítico, mas continuo pensando da mesma maneira (se não mais radicalmente): para se resenhar qualquer livro, é preciso conhecer também a versão original. Para se fazer um elogio superficial da obra de um compadre para algum desses suplementos de sábado, não é necessário nem que se domine o português - para revisar textos, os jornais dispõem de bons estagiários.

6 de fevereiro de 2009

Philip Roth

I lauched into my speech. "Hello-Brenda-Brenda-you-don't-know-me-that-is-you-don't-know-my-name-but-I-held-your-glasses-for-you-this-afternoon-at-the-club... You-asked-me-to-I'm-not-a-member-my-cousin-Doris-is-Doris-Klugman-I-asked-who-you-are..." I breathed, gave her a chance to speak, and then went ahead and answered the silence on the other end. "Doris? She's the one who's always reading War and Peace. That's how I know it's the summer, when Doris is reading War and Peace." Brenda didn't laugh; right from the start she was a practical girl.
"What's your name?" she said.
"Neil Klugman. I held your glasses at the board, remember?"
She answered me with a question of her own, one, I'm sure, that is embarassment to both the homely and the fair. "What do you look like?"
"I'm... dark."
"Are you a Negro?"
"No," I said.
"What do you look like?"
"May I come see you tonight and show you?"
"That's nice," she laughed. "I'm playing tennis tonight."
"I thought you were driving golf balls."
"I drove them already."
"How about after tennis?"
"I'll be sweaty after," Brenda said.
It was not to warn me to clothespin my nose and run in the opposite direction; it was a fact, it apparently didn't bother Brenda, but she wanted it recorded.
"I don't mind," I said, and hoped by my tone to earn a niche somewhere between the squeamish and the grubby. "Can I pick you up?"
She did not answer a minute; I heard her muttering, "Doris Klugman, Doris Klugman..." Then she said, "Yes, Briarpath Hills, eight-fifteen."
"I'll be driving a -" I hung back with the ear, "a tan Plymouth. So you'll know me. How wil I know you?" I said with a sly, awful laugh.
"I'll be sweating," she said and hung up.

Trecho do conto "Goodbye Columbus", de Philip Roth, em que os jovens Neil Klugman e Brenda Patimkn iniciam um inquietante relacionamento guiado pela curiosidade sexual e pelas perdas.

1 de fevereiro de 2009

Livros de memórias são obras muito importantes para nós, escritores. É o caso de "A loja do Osório", de Petronio Rodrigues Chaves (Thesaurus, Brasília, 1984). Não por elencar fatos históricos de pouca relevância ou por enfeixar uma enfadonha árvore genealógica de coronéis e outras personagens que a história fez ou fará o favor de esquecer, tampouco por apresentar um estilo algumas vezes sofrível e outras inspirado. O que vale nesta obra é a lembrança das pequenas figuras, que por seu estilo controverso e peculiar, têm boas chances de se tornar personagens literárias. Destaco a crônica de César França, publicada no jornal de Ituiutaba (MG) lá pelo ano de 1956, que transcrevo a seguir:

Sepultura 6.328

Uma chuva fria e mansa vinha lavar a fina areia da sepultura de n. 6.328. Poucas horas antes havia sido conduzido para ali um corpo que, triturado pelo sofrimento de uma enfermidade de três meses de cama, não pesava mais que trinta quilos.
E de quem era este corpo? Da figura mais popular da cidade, do homem mais despreocupado que já passou pela terra, tão despreocupado que deixou para morrer na quarta-feira de cinzas, para não preocupar os seus amigos que brincavam na terça-feira gorda do Carnaval.
Do filósofo que interpretava o viver da forma seguinte: "Da vida nada se leva, trabalhar para quê?"
Que preferiu morrer solteirão porque achava que devia amar a todas as mulheres, e sempre dizia: "deve-se amar a uma, mas nunca desprezando as outras".
Enfim, pertenceu este corpo ao maior boêmio de todos os tempos. Ao que de mais típico pode uma cidade criar no seu reduto de boemia. A esta altura, acredito eu que todos os leitores já devem saber que falo de "José Abadio".
Quando passou por nossa cidade a estrela mais querida do rádio brasileiro, e que, no ato de sua apresentação, gritou do palco:
- "Quero dançar com o moço mais popular da cidade!" - um grito uníssono reboou pelos quatro cantos do salão:
Zé Abadio! Zé Abadio! e lá se foi ele no seu passo de malandro, corpo todo gingando, mais parecendo um bodoque, a dançar e a beijar Emilinha Borba, no palco.
Era, pois, assim o nosso José Abadio, visto deste lado, mas na outra face, no reverso desta alma estava um outro "José Abadio", um José Abadio caridoso, espírito cívico, cheio de iniciativas, amante de boas leituras e que gostava de estar sempre onde lobrigava uma boa palestra.
No tocante à caridade, esta tinha mroada efetiva no seu coração. Onde quer que houvesse um doente, rico ou pobre, ali estava ele, pronto para passar quantas noites fosse preciso. Se o doente viesse a falecer, ele o velava a noite toda, (não sei se dormia ou não). O certo é que se o enterro estivesse marcado para as oito ou nove horas, ele era o primeiro a chegar.
Jamais perdeu um enterro e só o perderia se o ignorasse.
Cheio de iniciativas, em 1938 idealizou a fundação do clube dos homens de cor de Ituiutaba, e graças à sua popularidade, viu concretizado seu sonho. Sendo seu primeiro presidente, deu-lhe o nome de Palmeira Clube, hoje com sua sede própria em pleno funcionamento bem no coração da cidade.
Espírito atilado, vivo e mordaz para uma crítica, em qualquer assunto e a qualquer momento tinha ele uma gíria toda sua, personalíssima.
Enfim, um livro teríamos que escrever se tudo fôssemos falar da vida desse boêmio, que por 47 anos, viveu entre nós. Limito-me, portanto, a parar por aqui. Antes que termine, porém, chamo José Abadio, de onde quer que esteja, na sua morada eterna para lhe dizer o seguinte:
- Quando cerrávamos a tampa do seu caixão (você deve ter visto) uma mulher em soluços, banhada em pranto, com o coração varado pelo gume da dor e da saudade, em ais lancinantes, dizia:
- "Leva, leva Nossa Senhora, leva meu filho para junto de si; tenha-o em sua companhia por amor do seu filho Jesus". E como mãe que foi Nossa Senhora, acredito eu, José Abadio, que ela atendeu aos rogos e às súplicas da sua mãe, levando o seu espírito para gozar do sossego do Paraíso Celeste.
Seu corpo seco, este devolvemo-lo à terra, que a ela pertencia.
Uma coisa, entretanto, ficou conosco, e esta jamais alguém a levará, é exclusivamente nossa, por todos os tempos, esta você nos legou com o seu bondoso coração: a saudade de você!
Saudade da sua gíria, saudade das suas pilhérias, saudade das suas malandragens, saudade, enfim, da sua CARIDADE."