2 de novembro de 2009

Herta Müller




O mundo se perguntou quem era a escritora romena naturalizada alemã que venceu o Nobel de literatura este ano. Alguns afoitos arriscaram opiniões duvidosas. Daniel Piza foi ousado ao dizer que Müller é uma escritora de segunda. Analisou a escritora considerando apenas uma obra e - pior - uma tradução. Pior ainda: tradução de Lya Luft. Acusou seus leitores de não terem lido o único livro de Herta publicado no Brasil - O compromisso, editado pela Globo. Bobagem, foram os estertores da vaidade. O fato é que a tradução da Lya Luft é fraca. Não vou aborrecer meus poucos leitores com detalhes da tradução. Até porque não tive acesso ao livro inteiro em alemão, mas somente a partes. Entretanto, o título nos dá uma boa ideia das opções da tradutora. No original: Heute wär mir lieber nicht begegnet. Em português: O compromisso. Depois de analisar a baixa qualidade da tradução, resolvi tentar outra obra. Pesquisei em sebos e encontrei uma boa versão feita na terrinha. Mais: consegui uma versão em espanhol também. Ainda não me considero conhecedor da literatura de Herta Müller, mas vou avançando. Até porque encontrar os livros de Herta é tarefa complicada, seja em alemão, em português ou em outra língua. Entrei em contato com livrarias alemãs em São Paulo e nada.

O homem é um grande faisão sobre a terra.
Der Mensch ist ein groβer Fasan auf der Welt.
Já podemos visualizar nesta tradução um pouco do estilo enigmático e elíptico que faz desta obra de Herta Müller uma coisa única na literatura. Logo no início da obra, a explicação para o título, uma nota da tradutora (Maria Antonieta C. Mendonça): "O título reporta-se ao provérbio romeno 'O homem é um grande faisão sobre a terra', o qual pretende estabelecer a associação entre o voo desajeitado do faisão e os defeitos e a acção desastrosa do homem sobre o mundo que o rodeia." Não pude deixar de relacionar com o "Albatroz", de Baudelaire. É um livro bonito, cujo tema é caro à autora: a imigração. No caso a luta de uma família romena para se mudar para a Alemanha. O casal: Windisch e a mulher. A filha Amalie. As frases são curtas, o que facilita a leitura em alemão. Ao estilo de James Salter, a mesma elegância.
Windisch é um pai agoniado que tenta justificar a corrupção da filha, que usa o sexo para conseguir o passaporte: "'A minha filha', diz Windisch medindo mentalmente a frase, 'a minha Amalie também já não é virgem'. O guarda-nocturno olha para a nuvem vermelha. 'As barrigas das pernas da minha filha parecem melões', diz Windisch." Ao mesmo tempo, a vida na Romênia é insuportável. Há sim muito de autobiográfico, já que o livro foi escrito quando Herta Müller tentava o visto para se mudar para a Alemanha.
Todos sabem que a escola do vencedor do Nobel passa por questões políticas. Mas há literatura ali também, há uma escritora laureada e respeitada na Europa. Não é somente dizer que foi uma surpresa, que é uma escritora de segunda, que mereciam muito mais o Nobel Philip Roth, Claudio Magris, Amós Oz. Até acrescentaria outros aí nesta lista, principalmente António Lobo Antúnes e por que não Rubem Fonseca?
Um trecho da tradução para que vocês julguem:
"As crianças agrupam-se em semi-círculo, segundo o tamanho, em frente da secretária do professor. Comprimem as palmas das mãos sobre as coxas. Elevam o queixo. Os olhos tornam-se grandes e húmidos. Cantam em voz alta.
Os meninos e as meninas são soldadinhos. O hino tem sete estrofes.
Amalie pendura o mapa da Roménia na parede.
'Todos os meninos moram em blocos de apartamentos ou em casas', diz Amalie. 'Cada casa tem quartos. Todas as casas juntas formam uma grande casa. Esta grande casa é nossa terra. A nossa pátria.'
Amalie aponta para o mapa. 'Esta é a nossa pátria', diz ela. Com a ponta do dedo procura os pontos negros no mapa. 'Isto são cidades da nossa pátria', diz Amalie. 'As cidades são os quartos desta grande casa, da nossa terra. Nas nossas casas moram o nosso pai e a nossa mãe. São os nossos pais. Cada criança tem os seus pais. Tal como o nosso pai na cada em que nós vivemos é o pai, assim o camarada Nicolau Ceausescu é o pai da nossa terra. E tal como a nossa mãe na casa em que nós vivemos é a nossa mãe, assim a camarada Elena Ceausescu é a mãe da nossa terra. O camarada Nicolau Ceausescu é o pai de todas as crianças. E a camarada Elena Ceausescu é a mãe de todas as crianças. Todas as crianças amam o camarada e a camarada porque eles são os seus pais.'"

Aí está toda a ironia do livro: Amalie não ama seu pai e sua mãe, que usam a sua beleza para fugir do regime totalitário de seu país. É um livro muito bonito, escrito de maneira primorosa por uma grande escritora. Uma escritora de primeira.