1 de fevereiro de 2009

Livros de memórias são obras muito importantes para nós, escritores. É o caso de "A loja do Osório", de Petronio Rodrigues Chaves (Thesaurus, Brasília, 1984). Não por elencar fatos históricos de pouca relevância ou por enfeixar uma enfadonha árvore genealógica de coronéis e outras personagens que a história fez ou fará o favor de esquecer, tampouco por apresentar um estilo algumas vezes sofrível e outras inspirado. O que vale nesta obra é a lembrança das pequenas figuras, que por seu estilo controverso e peculiar, têm boas chances de se tornar personagens literárias. Destaco a crônica de César França, publicada no jornal de Ituiutaba (MG) lá pelo ano de 1956, que transcrevo a seguir:

Sepultura 6.328

Uma chuva fria e mansa vinha lavar a fina areia da sepultura de n. 6.328. Poucas horas antes havia sido conduzido para ali um corpo que, triturado pelo sofrimento de uma enfermidade de três meses de cama, não pesava mais que trinta quilos.
E de quem era este corpo? Da figura mais popular da cidade, do homem mais despreocupado que já passou pela terra, tão despreocupado que deixou para morrer na quarta-feira de cinzas, para não preocupar os seus amigos que brincavam na terça-feira gorda do Carnaval.
Do filósofo que interpretava o viver da forma seguinte: "Da vida nada se leva, trabalhar para quê?"
Que preferiu morrer solteirão porque achava que devia amar a todas as mulheres, e sempre dizia: "deve-se amar a uma, mas nunca desprezando as outras".
Enfim, pertenceu este corpo ao maior boêmio de todos os tempos. Ao que de mais típico pode uma cidade criar no seu reduto de boemia. A esta altura, acredito eu que todos os leitores já devem saber que falo de "José Abadio".
Quando passou por nossa cidade a estrela mais querida do rádio brasileiro, e que, no ato de sua apresentação, gritou do palco:
- "Quero dançar com o moço mais popular da cidade!" - um grito uníssono reboou pelos quatro cantos do salão:
Zé Abadio! Zé Abadio! e lá se foi ele no seu passo de malandro, corpo todo gingando, mais parecendo um bodoque, a dançar e a beijar Emilinha Borba, no palco.
Era, pois, assim o nosso José Abadio, visto deste lado, mas na outra face, no reverso desta alma estava um outro "José Abadio", um José Abadio caridoso, espírito cívico, cheio de iniciativas, amante de boas leituras e que gostava de estar sempre onde lobrigava uma boa palestra.
No tocante à caridade, esta tinha mroada efetiva no seu coração. Onde quer que houvesse um doente, rico ou pobre, ali estava ele, pronto para passar quantas noites fosse preciso. Se o doente viesse a falecer, ele o velava a noite toda, (não sei se dormia ou não). O certo é que se o enterro estivesse marcado para as oito ou nove horas, ele era o primeiro a chegar.
Jamais perdeu um enterro e só o perderia se o ignorasse.
Cheio de iniciativas, em 1938 idealizou a fundação do clube dos homens de cor de Ituiutaba, e graças à sua popularidade, viu concretizado seu sonho. Sendo seu primeiro presidente, deu-lhe o nome de Palmeira Clube, hoje com sua sede própria em pleno funcionamento bem no coração da cidade.
Espírito atilado, vivo e mordaz para uma crítica, em qualquer assunto e a qualquer momento tinha ele uma gíria toda sua, personalíssima.
Enfim, um livro teríamos que escrever se tudo fôssemos falar da vida desse boêmio, que por 47 anos, viveu entre nós. Limito-me, portanto, a parar por aqui. Antes que termine, porém, chamo José Abadio, de onde quer que esteja, na sua morada eterna para lhe dizer o seguinte:
- Quando cerrávamos a tampa do seu caixão (você deve ter visto) uma mulher em soluços, banhada em pranto, com o coração varado pelo gume da dor e da saudade, em ais lancinantes, dizia:
- "Leva, leva Nossa Senhora, leva meu filho para junto de si; tenha-o em sua companhia por amor do seu filho Jesus". E como mãe que foi Nossa Senhora, acredito eu, José Abadio, que ela atendeu aos rogos e às súplicas da sua mãe, levando o seu espírito para gozar do sossego do Paraíso Celeste.
Seu corpo seco, este devolvemo-lo à terra, que a ela pertencia.
Uma coisa, entretanto, ficou conosco, e esta jamais alguém a levará, é exclusivamente nossa, por todos os tempos, esta você nos legou com o seu bondoso coração: a saudade de você!
Saudade da sua gíria, saudade das suas pilhérias, saudade das suas malandragens, saudade, enfim, da sua CARIDADE."


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