19 de dezembro de 2005

Até aos seis anos, Iolanda, não conheci a família da minha mãe nem o odor dos castanheiros que o vento de setembro trazia da Buraca, com as ovelhas e os chibos que galgavam a Calçada na direção do cemitério abandonado, tangidos por um velho de boina e pelas vozes dos mortos. Ainda hoje, meu amor, estendido na cama à espera do efeito do valium, me sucede como nas tardes de verão em que me deitava, à procura de fresco, num bairro de jazigos destroçados: sinto um ornato de sepultura magoar-me a perna, ouço a erva das campas no lençol, vejo os serafins e os Cristos de gesso que me ameaçam com as mãos quebradas; uma mulher de chapéu plantava couves e nabos nas raízes dos ciprestes; os badalos dos cabritos tilintavam na capela sem imagens, reduzida a três paredes calcinadas e a um pedaço de altar com toalhinha submerso em trepadeiras; e eu observava a noite avançar lápide a lápide, coagulando as bênçãos dos santos em manchas de trevas.

Este é o primeiro parágrafo do livro "A ordem natural das coisas", de António Lobo Antunes.

2 comentários:

Claudio Eugenio Luz disse...

Devo ser um completo ignorante. Como não gosto de escrever no escuro, fiz a minha pesquisa. E, logo de cara, dou com essa frase:"Os leitores são umas putas, amam-nos e depois deixam-nos." Desconhecia o escritor. Grato, porque me obriga a correr atrás.
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hábraços,claudio

whisner disse...

então, claudio, andaram dizendo por aí que o lobo antúnes é melhor do que saramago, mas não é para tanto, né? essa coisa de tentarem achar um substituto (quem sabe um segundo nobel pra língua portuguesa? - essas bobagens). mas tem a inês pedrosa, fantástica. vou postar algo dela... e, claro, meu muito obrigado sempre pelas visitas...