Primeiro as palavras que fingimos existir e depois as estratégias e depois o pode e deve ser e assim. E depois aqueles consentimentos tímidos que se transformam em deliciosos absurdos límpidos libelos de incontensão. E depois usamos muitas palavras dizendo muito durante horas contando histórias e inventando muita coisa pra fazer amanhã e depois de amanhã. E depois mais desejo e os desdobramentos e aquele tipo de festa e aquele tipo de cansaço. E depois o tempo e os dedos do tempo as raízes do tempo a secura do tempo a umidade excessiva do tempo: os dias começam a se acumular e eu sei o que ela dirá e ela sabe o que eu direi. O que diremos daqui a pouco. O que será dito em cinco minutos. E de novo. E depois eu percebo que ela está olhando nada pela janela está deixando um cigarro aceso no cinzeiro se esquece de regar as violetas ouve o mesmo Liszt folheia uma revista de economia e responde uma coisa sem sentido porque não prestou atenção na minha pergunta: e então eu sei que uma outra figura fulge flameja vibra nos pensamentos dela na pele.
Trecho do conto "É", que está no novo (belo) livro de Luci Collin, "Vozes num divertimento", lançado recentemente pela Travessa dos Editores.
27 de agosto de 2008
12 de agosto de 2008
O nome da musa
Para Adalgisa Neri
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida,
nem de fada, nem de deusa, nem de musa, nem de sibila, nem de terras,
nem de astros, nem de flores.
Mas te chamo a que desceu do luar para causar as marés
e influir nas coisas oscilantes.
Quando vejo os enormes campos de verbena agitando as corolas,
sei que não é o vento que bole, mas tu que passas com os cabelos soltos.
Amo contemplar-te nos cardumes das medusas que vão para os mares boreais,
ou no bando das gaivotas e dos pássaros dos pólos revoando
sobre as terras geladas.
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida.
O teu nome deve estar nos lábios dos meninos que nasceram mudos,
nos areais movediços e silenciosos que já foram o fundo do mar,
no ar lavado que sucede às grandes borrascas,
na palavra dos anacoretas que te viram sonhando
e morreram quando despertaram,
no traço que os raios descrevem e que ninguém jamais leu.
Em todos esses movimentos há apenas sílabas do teu nome secular
que coisas primitivas escutaram e não transmitiram às gerações.
Esperemos, amigo, que searas gratuitas nasçam de novo,
e os animais da criação se reconciliem sob o mesmo arco-íris;
então ouvires o nome da que não chamo Eva
nem lhe dou nenhum nome de mulher nascida.
Jorge de Lima (1893 - 1953).
Para Adalgisa Neri
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida,
nem de fada, nem de deusa, nem de musa, nem de sibila, nem de terras,
nem de astros, nem de flores.
Mas te chamo a que desceu do luar para causar as marés
e influir nas coisas oscilantes.
Quando vejo os enormes campos de verbena agitando as corolas,
sei que não é o vento que bole, mas tu que passas com os cabelos soltos.
Amo contemplar-te nos cardumes das medusas que vão para os mares boreais,
ou no bando das gaivotas e dos pássaros dos pólos revoando
sobre as terras geladas.
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida.
O teu nome deve estar nos lábios dos meninos que nasceram mudos,
nos areais movediços e silenciosos que já foram o fundo do mar,
no ar lavado que sucede às grandes borrascas,
na palavra dos anacoretas que te viram sonhando
e morreram quando despertaram,
no traço que os raios descrevem e que ninguém jamais leu.
Em todos esses movimentos há apenas sílabas do teu nome secular
que coisas primitivas escutaram e não transmitiram às gerações.
Esperemos, amigo, que searas gratuitas nasçam de novo,
e os animais da criação se reconciliem sob o mesmo arco-íris;
então ouvires o nome da que não chamo Eva
nem lhe dou nenhum nome de mulher nascida.
Jorge de Lima (1893 - 1953).
4 de agosto de 2008
Convém lavarmo-nos, pêlos e sombras, solidão e desgraça, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas, Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? EStás me ouvindo? Altares, velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras no mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores líricos. E dizem que os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato.
Hilda Hilst, trecho de "A obscena senhora D". Sobre este livro escreveu Caio Fernando Abreu: "A história - se é que há uma história aqui - é simples: após a morte do amante, Hillé, a Senhora D, se recolhe ao vão da escada, 'um Nada igual ao teu, repensando misérias, tentando escapar, como tu mesmo, contornando um vazio, relembrando', em direção à própria morte. Numa prosa que se dilata e contrai, às vezes estufada, barroca, repleta de cintilâncias, outras se fazendo navalha, corte seco, a linguagem de Hilda Hilst avança sobre as camisas-de-força da sintaxe para desvendar insuspeitados espaços. O resultado é um texto que, fora de nossa literatura, ao lado de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, só encontraria paralelo em Joyce ou Samuel Beckett. Mais além: é vivo."
Hilda Hilst, trecho de "A obscena senhora D". Sobre este livro escreveu Caio Fernando Abreu: "A história - se é que há uma história aqui - é simples: após a morte do amante, Hillé, a Senhora D, se recolhe ao vão da escada, 'um Nada igual ao teu, repensando misérias, tentando escapar, como tu mesmo, contornando um vazio, relembrando', em direção à própria morte. Numa prosa que se dilata e contrai, às vezes estufada, barroca, repleta de cintilâncias, outras se fazendo navalha, corte seco, a linguagem de Hilda Hilst avança sobre as camisas-de-força da sintaxe para desvendar insuspeitados espaços. O resultado é um texto que, fora de nossa literatura, ao lado de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, só encontraria paralelo em Joyce ou Samuel Beckett. Mais além: é vivo."
3 de agosto de 2008
Et maintenant, comment voulez-vous que je le regrette,
votre Paris bruyant et noir? Je suis si bien dans mon moulin!
C'est si bien le coin que je cherchais, un petit coin parfumé et chaud, à mille lieues des journaux, des fiacres, du brouillard!... Et que de jolies choses autour de moi! Il y a à peine huit jours que je suis installé, j'ai déjà la tête bourrée d'impressions et de souvenirs... Tenez! pas plus tard qu'hier soir, j'ai assisté à la rentrée des troupeaux dans un mas (une ferme) qui est au bas de la côte, et je vous jure que je ne donnerais pas ce spectacle pour toutes les premières que vous avez eues à Paris cette semaine. Jugez plutôt.
E agora, como sentir falta dessa sua Paris barulhenta e escura? Estou bem no meu moinho! É exatamente o canto que procurei, um cantinho perfumado e quente, a mil léguas dos jornais, dos fiacres, dos nevoeiros!... E quanta coisa bonita ao meu redor! Faz oito dias que me instalei, e já tenho a cabeça cheia de impressões e de lembranças... Veja, ontem à noite assisti ao retorno dos rebanhos para um "mas" (um sítio), que fica abaixo da encosta e juro que não trocaria este espetáculo por todas as premières a que assistiram em Paris esta semana. Julgue você mesmo.
Alphonse Daudet (1840-1897), trecho do romance "Lettres de mon moulin". A tradução é minha. Este post foi só para que pensassem no seguinte: é mesmo necessário morar nas capitais para se escrever uma obra-prima? Claro que a questão de se viver nas cidades grandes passa pelo fato de que nestas metrópoles se concentram as grandes editoras. Em conversa com o Nelson de Oliveira, surgiu a seguinte questão: um gênio morreria despercebido lá no seu interior? Ninguém poderia responder a esta pergunta, mas do mesmo modo que descobriram Van Gogh e Kafka, muitos outros provavelmente estão mortos e bem enterrados até hoje nos porões de sua misantropia.
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