4 de agosto de 2008

Convém lavarmo-nos, pêlos e sombras, solidão e desgraça, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas, Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? EStás me ouvindo? Altares, velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras no mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores líricos. E dizem que os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato.


Hilda Hilst, trecho de "A obscena senhora D". Sobre este livro escreveu Caio Fernando Abreu: "A história - se é que há uma história aqui - é simples: após a morte do amante, Hillé, a Senhora D, se recolhe ao vão da escada, 'um Nada igual ao teu, repensando misérias, tentando escapar, como tu mesmo, contornando um vazio, relembrando', em direção à própria morte. Numa prosa que se dilata e contrai, às vezes estufada, barroca, repleta de cintilâncias, outras se fazendo navalha, corte seco, a linguagem de Hilda Hilst avança sobre as camisas-de-força da sintaxe para desvendar insuspeitados espaços. O resultado é um texto que, fora de nossa literatura, ao lado de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, só encontraria paralelo em Joyce ou Samuel Beckett. Mais além: é vivo."

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