28 de abril de 2006

Por la ventana llega el rumor del agua, casi inmóvil, y veo, delicadamente desdibujada, la ribera opuesta, verdosa o azul en la tarde, con las primeras luces titilando en el camino que va a Niza y a Italia.

Início do conto Encrucijada, do livro Historias de amor, de Adolfo Bioy Casares.

27 de abril de 2006

Compreendo perfeitamente que sintas necessidade de repouso e que tenhas vontade de te agarrar de novo aos livros. Santo Deus, ainda tens vontade de reflectir, sempre tiveste necessidade de reflectir em montes de coisas, de olhar e de ver, de anotar medidas, impressões, observações que não sabes como hás-de classificar. Deixa isso por conta dos arquivistas da polícia. Ainda não compreendeste que o mundo do pensamento está lixado e que a filosofia é pior que a bertillonagem. Vocês até me dão vontade de rir com a vossa angústia metafísica, é o cagaço que vos constrange, o medo da vida, o medo dos homens de acção, da acção, da desordem. Mas nem tudo é desordem, pá. São desordem os vegetais, os minerais e os animais; são desordem a multidão das raças humanas; são desordem a vida dos homens, o pensamento, a história, as batalhas, as invenções, o comércio, as artes; são desordem as teorias, as paixões, os sistemas. As coisas sempre se passaram assim. Por que diabo se haviam de lembrar de introduzir ordem nelas? Que ordem? O que é que vocês procuram? Não há verdade alguma. O que há é acção, acção que obedece a um milhão de móbeis diferentes, acção efémera, acção que padece de todas as contingências possíveis e imaginárias, acção antagonista. A vida. A vida é o crime, o roubo, o ciúme, a fome, a mentira, o lixanço, a estupidez, as doenças, os erupções vulcânicas, os tremores de terra, montões de cadáveres. O que é que tu podes fazer, pá? Não me digas que vais começar a pôr livros!...

Trecho de Moravagine.

26 de abril de 2006

A acreditar no que ele dizia, tinha visto, tinha lido, conhecia tudo. Havia exercido todas as profissões, palmilhara o mundo inteiro e tinha amigos por toda a parte. Vivera em todas as cidades e atravessara várias regiões virgens, acompanhando um explorador ou servindo de guia a missões científicas. Conhecia as casas pelo número, as montanhas pela altitude, as crianças pela data de nascimento, os barcos pelo nome, as mulheres pelos amantes, os homens pelos defeitos, os animais pelas qualidades, as plantas pelas virtudes, as estrelas pela influência.

Trecho de Moravagine, romance de Blaise Cendrars, em tradução de Ruy Belo para as Edições Cotovia, Portugal, 1992. Originalmente foi publicado pelas Edições Grasset, em 1926.

25 de abril de 2006

Não que eu achasse que um dos argumentos de meu romance "As espirais de outubro", que editarei ano que vem, fosse inédito. Acho que dificilmente algo pode ser feito hoje que já não foi tentado em alguma outra época. Mas encontrar o tema da espiral em Moravagine foi uma surpresa. O escritor Blaise Cendrars não é muito lido aqui no Brasil. Tenho uma tradução portuguesa do livro, mas queria encontrar uma edição original, em francês. Alguém possui e deseja vender? Deixe recado aqui. Depois postarei alguns trechos deste que é um dos maiores romances em língua francesa.

23 de abril de 2006

Voltar à experiência íntima e direta da literatura, sem o apoio de intermediários, sem manuais de leitura, sem muletas, ou precauções. Regressar à leitura dos grandes livros, retomar a experiência - prazerosa, mas atordoante - do puro prazer de ler. Recuperar o impacto, a desordem íntima, a devastação interior que a leitura de um grande livro sempre provoca. Expor-se: entender que ler é, também, ser lido. Nada se assemelha ao contato silencioso e misterioso, mas intenso, que liga o leitor a um livro. Trata-se de uma experiência íntima, secreta, em que a inteligência e a sensibilidade se expandem, mas também se apequenam. Hoje, infelizmente, a idéia desta colisão com o real, do impacto contido nesta experiência particular, da exposição sem defesas ao calor do texto, parece perdida. As leituras, hoje em dia, ou são técnicas, ou burocráticas, ou didáticas, isso quando não geridas pelos modismos, pelas agências literárias e pelo marketing.

José Castello, em matéria para o jornal Rascunho.

22 de abril de 2006

Meu livro de contos "A cidade devolvida" foi citado na seção "Vitrine brasileira", da Folha de São Paulo de hoje.

9 de abril de 2006

Cansado, e por falta de opção, fui para a entrada da delegacia onde deixei-me ficar observando a rua deserta. Nunca gostei de ver as portas corridas das lojas aos domingos; dão uma sensação ruim, de vazio no estômago. Na rua escura, vi uma poça amarela de luz em frente a um botequim e alguns homens bebiam cerveja. Passavam fiapos de nuvens sobre uma lua cautelosa. Não sei o que pensava, nem há quanto tempo, entretanto uma gargalhada indecente, vinda do interior da delegacia, me fez acordar de uma espécie de devaneio. Há mais de vinte horas fazia plantão. Algumas pessoas despediram-se de mim por estar parado na entrada da delegacia na hora que saíram.

Wilson Rossato, trecho do romance "O tolo precário", lançado em 2004 pela Editora Lamparina.

5 de abril de 2006

Darwinismo social é o termo da moda. Como se Darwin não estivesse ultrapassado e ainda existisse sociedade...

3 de abril de 2006

Infância cada um tem a sua, a questão está em saber guardá-la, uma chance única para todos, eu me engruvinhava como um caramujo até ver passar a tempestade, meu pai exausto, o avô e os bôeres, Andréa com o meu umbigo vogando sobre as ondas, valsas e mais valsas, minha mãe desinteressada como se aquilo não dependesse mais dela, o útero fechado para balanço até o Dia do Juízo, até o dia seguinte pelo menos, quando me descobrisse a um canto com o meu resto de infância. O que valia eram os sonhos, e sobretudo o sonho, Aníbal e as Guerras Púnicas para salvar as aparências, Clara subindo descendo ladeiras no meu corpo sem sequer dar pela minha presença, a fórmula do azoto e a do bário, ou bem era anjo ou bem era pastora, não importa conquanto que seja Clara, a sempre distante, a carne da minha carne: a raiz cúbica e a raiz quadrada, eu é que sei das minhas raízes.

Campos de Carvalho. Trecho retirado do livro "A chuva imóvel".