Nasci atrás do palco improvisado por meu pai, no largo duma pequena aldeia dos arredores de Lisboa. Assim que os meus olhos conseguiram focar além dos vinte centímetros que me distanciavam do rosto de minha mãe, devo ter fixado algum pormenor da madeira. Pois durante anos, na imperfeição duma das tábuas que nos acompanharam na doce peregrinação que foi a minha infância, eu via sempre o enigmático olho dum enigmático animal que foi o meu primeiro e mais remoto amigo.
Nasci três horas antes do espetáculo. E embora o meu pai insistisse para que a minha mãe desse as deixas por detrás da cortina azul do fundo do palco deitada na sua cama improvisada, ela preferiu subir à cena para interpretar a costumeira Leonor Telles, ansiosa por mostrar ao público o seu último rebento. E como eu chorasse durante a fala escrita por meu pai com reminiscências de Marcelino Mesquita, em que Leonor enlouquece de paixão o pobre D. Fernando, minha mãe, num gesto arrebatado, tirou para fora o peito inchado e manchou de colostro a camisa de linho de Leonor, donde nenhuma lixívia jamais conseguiu apagar as nódoas amarelas.
Parágrafos iniciais do romance "O pranto de Lúcifer", de Rosa Lobato de Faria (Lisboa, 1932).
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