2 de fevereiro de 2008

Um ar de família


Felipe Fortuna


“A crítica contemporânea está realmente aparelhada de forma também contemporânea?” A pergunta, feita ao poeta Manoel Ricardo de Lima na revista Modo de Usar & Co., reflete uma incompreensão da função da crítica: afinal, esta é mesmo contemporânea quando surge no instante subseqüente ao da obra sobre a qual discorre. O exemplo da crítica de Mario Faustino é aqui lapidar: no momento exato em que analisou a obra de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo, a maioria desses poetas estava viva e exercia notável influência no seu entorno literário. Famosamente, Mario Faustino assim julgou o poeta Drummond, valendo-se da terminologia encontrada em Ezra Pound: “Não escreve a sério sobre poesia, (...) nem oralmente nem por escrito. (...) É, quando muito, um master. Não é um inventor (...).” A leitura das cartas encaminhadas a Mário de Andrade, por exemplo, indica que o crítico não estava longe de uma avaliação muito precisa sobre o alheamento do poeta mineiro quanto à evolução da poesia brasileira em sua época.

Porém, uma nova pergunta feita pela revista indica maior confusão: “Você acha que a crítica ainda segue parâmetros que a poesia de hoje põe justamente em cheque [sic]?” Em língua portuguesa, deve-se escrever xeque no lugar daquele documento bancário – mas os editores já haviam prometido “um clima de intervenção”. O que importa, no entanto, é reconhecer que a evolução da poesia (e tudo o que supostamente vier a ser questionado nessa evolução) não deverá, necessariamente, alterar o conjunto de características da crítica literária. Na análise provocadora que Décio Pignatari fez do soneto “Áporo”, de Carlos Drummond de Andrade, jamais se reclama de que um modernista escreveu um soneto, forma de resto exorcizada vigorosamente também pelos concretistas. Na resposta à pergunta, Manoel Ricardo de Lima vai ao ponto: “Não é um problema da crítica, apenas, mas também do poema, ambos como política, política sempre como um nó do real (...).”

Como se comentou anteriormente, a multiplicação de revistas e antologias literárias não vem afirmando a presença de uma tendência dominante ou de jovens poetas “com voz forte”. Paradoxalmente, reforça-se a percepção quanto à dificuldade de se constituir vida literária no país, o que já tinha sido divulgado por Mario Faustino no mesmo artigo em que avaliou tão severamente os poetas em atividade: “Vida literária, emulação, reuniões sérias, leituras de poesia inédita, troca de experiências, debates, nada disso temos. Quando se conversa sobre um poema, o mais que sai, em geral, é o ‘tá bom’, o ‘muito ruim’, o ‘é uma beleza’. Em lugar disso tudo, há o fenômeno amizade, o mesmo que se verifica em nossa administração, em nossa política: meu amigo escreve bem, meu inimigo escreve mal.”

Um dos editores de Modo de Usar & Co., Fabiano Calixto publicou Sangüínea (Editora 34, 127p., R$26), que reúne seus poemas do período 2005-2007. Era de se esperar (pois os editores prometeram “a mesma responsabilidade imposta a si mesmos”) que a produção respondesse aos princípios constantes na apresentação da revista, ou seja, o surgimento de “possíveis novas formas”. Nada, contudo, distingue os poemas do livro da corrente poética que exibe influências da canção popular (não apenas brasileira), da citação ou da alusão literária entremeada aos versos, além das técnicas de composição trazidas pelo modernismo. Num poeta tão refratário ao pedantismo (tema obcecante em poemas, artigos e entrevistas), surpreende a quantidade de citações, em três línguas, que praticamente transforma alguns dos versos em palimpsestos.

Mais significativo é perceber o que Marcos Siscar denominou “a retórica das dedicatórias” nos poemas de Fabiano Calixto, que o crítico vai explicar sem perceber que denuncia a dimensão menor dessa poesia: “Com os fios da amizade poética, explicitando laços e afinidades, Sangüínea vai tecendo um espaço comum, um ar de família, na tentativa de estabelecer comunidade.” Na apresentação do mesmo livro, mal escapando à anotação típica do colunismo social, Carlito Azevedo observa que “Fabiano Calixto é um poeta que sabe se fazer querido pelos amigos. E alguns dos belos-amaros poemas deste livro praticam um procedimento que consiste em transformar numa espécie de ‘voz off’ as vozes de amigos (...)”.

Recolho uma estrofe de “A Falta que Ela me Faz”:

ontem falei ao telefone com Carlito

(estava calçando seu All-star verde

e ia dar uma volta à Lagoa com Marilinha).

Com desenvoltura, o livro é bem o modelo endogâmico que transforma os amigos e poetas em audiência receptiva e cúmplice de um contexto já conhecido; ainda mais marcante na série de poemas reunida em “Caixa de Saída”, onde o poeta envia e-mails para algumas amistosas admirações.

Também dedica “Soneto” a Dirceu Villa, o mesmo que escreveu a seguinte crítica sobre livro em que está citado também nos agradecimentos: “Fabiano Calixto é meu amigo, o que tornaria as coisas complicadas para mim, neste exato momento, se não fosse o ótimo poeta que é. (...) Foi um dos agraciados do PAC do ano passado, e a gente agradece ao PAC por esse tipo de coisa.” Quem é a gente – um coletivo de poetas? Aqui o elogio cordial ao amigo se estende ao Programa de Ação Cultural, mantido pelo Estado de São Paulo, que subvencionou Sangüínea. Assim se fecha um ciclo: o crítico fraterno fala bem do poeta e, no caminho, também da ajuda governamental. Mas o crítico não está sozinho: ele é “a gente”. E isso é Brasil.

Lírico e ardoroso, Fabiano Calixto pergunta em “E-Mail para Paul McCartney”:

as canções

de que são feitas?

da mesma erupção de

azuis de que são feitos

os oceanos? ou

do mesmo tecido que

veste vôos de borboletas? (...)

Mais adiante, continua a indagar:

da coleção de fuzilamentos

de mulheres

como Anna Akhmátova?

Aqui a emoção fica suspensa, infelizmente, pelo erro de informação biográfica, pois a poeta russa morreu de causas naturais numa casa de repouso, havendo realizado o milagre de sobreviver a Joseph Stálin. Contra os fatos não há argumentos – mas haverá a canção?


Matéria publicada no caderno Idéias & Livros, do Jornal do Brasil, hoje, dia 02 de fevereiro de 2008.

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