2 de fevereiro de 2012
Então você quer ser escritor?, de Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto não tem mais nada a provar a ninguém, já tem o seu lugar garantido no panteão da literatura brasileira. Meu pequeno comentário a respeito destes seus contos, portanto, nada pretende acrescentar à vasta bibliografia que cuida de analisar a obra do escritor paranaense. Se este texto conseguir incentivar um ou outro a ler sua obra, me darei por satisfeito.
Os contos (dezesseis, distribuídos por duzentas e poucas páginas, publicados em 2011) tratam, de um modo bem geral, da infelicidade humana, do baixo valor de mercado do orgulho e da vaidade. São narrativas construídas de acordo com o conceito clássico de conto: início, meio e fim (às vezes surpreendente). Com isso, quero dizer que Miguel Sanches Neto quer contar uma história, mas não tem uma ânsia de contar uma história, ele vai devagar, como diríamos em Minas Gerais, "comendo pelas beiradas". Ele vai tateando, rondando o leitor, como quem não quer nada e, de repente, dá o bote. Para tanto, muitas vezes divide os contos em partes, dá uma volta no passado, prepara o chão.
O título do conto de abertura dá o tom da obra: "Sangue". O leitor que se prepare para muito sangue, mas não aquele dos faroestes, dos filmes atuais de Hollywood, mas o sangue nouvelle vague, o sangue contido, que vai tingindo aos poucos um cenário outrora puro, branco. Há também carne por todo lado. A mulher que não suporta mais o cheiro de sangue e de carne (esse trauma se repetirá em outras partes do livro), as árvores submersas que um artista de uma pequena cidade utiliza para construir suas peças indecentes, a faca que quase é usada para matar uma criança, as memórias de um soldado que romantizava a guerra, o marginal que sonhava em terminar, com o pai, uma casa na árvore e outras histórias que deixam em nós uma impressão de desassossego, de vazio.
Mas eu queria falar especialmente do conto "Vestindo meu avô". Poucas vezes li um texto tão bem concebido, tão bem escrito. Confesso que saí da leitura um pouco deprimido, pensativo. Um garoto que respeitava o avô porque sempre o via com os sapatos bem engraxados. Um avô fugidio e seu cavalo cansado de longas viagens e de repente o menino que vai para a cidade grande, se esquecendo da terra natal, até o dia em que o pai lhe telefona, pedindo que venha ver o avô pela última vez. Aí, para mim, começa a genialidade do conto. O sentimento de proximidade que pai e filho tinham abandonado, é recuperado quando ambos têm de lavar o corpo sem vida do velho, de um velho degradado, que nem usada mais sapatos, mas chinelos de dedo. É uma morte pesada, crua, indigesta, como deveria ser.
"Então você quer ser escritor?" é o conto que fecha o volume e fala de um modo peculiar que a obra é coisa totalmente diferente de autor. Neste texto, Miguel Sanches Neto esmiúça as armadilhas das oficinas literárias, em que os escritores que as ministram sabem da fragilidade do talento de seus pupilos. Mostra um professor de idade, disposto a elogiar seus alunos para garantir a mensalidade e às vezes uma ou outra aventura sexual.
Trecho
Sobre uma mesa velha, no quintal, com o sol nascendo, lavávamos seu corpo. O pai queria fazer alguma coisa. o avô tinha se sujado muito. Não eram propriamente fezes, mas um líquido com sangue e células podres. Fui procurar um terno, havia um no armário. Mas encontrei apenas sapatos velhos.
Voltei para o quintal, ele continuava soltando aquele líquido podre. O pai me mandou pegar a mangueira, eu me lembrei da época em que matávamos um porco, o animal era pelado e lavado antes de ser aberto. A diferença é que agora íamos fechar um corpo. O pai apertava a barriga magra do avô, eu jogava água na mesa. Quando não saiu mais nada, fizemos a barba dele e lavamos de novo o corpo, secamos e o embrulhamos em um lençol branco. Depois de me ajudar a carregá-lo para a cama, o pai ficou no quintal limpando a sujeira, jogando terra seca no chão úmido. Eram oito horas, o sol alto, o comércio estava abrindo. Peguei o carro e saí para providenciar o enterro.
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