23 de julho de 2009

Um estrangeiro


Não tenho dúvida alguma que um grande livro é aquele que deixa o leitor confuso, que com uma linguagem requintada e cheia de lirismo vai além da trama, de encontro ao que poderia chamar de incômodo. E para alcançar esse objetivo, para desconcertar o leitor, o autor desta obra não pode ter medo de arriscar.
Guy Corrêa é um autor que não se deixa iludir pelo caminho fácil de um texto linear (ele se encaixa no tipo de escritor a que me referi no parágrafo acima, àquele que não subestima seu leitor) e seu romance "O hóspede perplexo" mereceu a minha atenção e preenche todos os requisitos de uma obra de arte.
O livro pode ser dividido em três tempos e há um tema a perpassar toda a história: a imigração. O próprio Guy, jornalista experimentado, já foi um imigrante em Portugal e na Inglaterra. A primeira parte narra um pesadelo que o personagem principal está tendo - e aí já se inicia o drama da imigração. Ao que parece, um homem tenta desesperadamente nadar em um mar inabalável, como se estivesse em uma difícil travessia clandestina, rumo ao sonho de uma vida melhor em uma praia de um país de primeiro mundo.
Na segunda parte conhecemos o narrador do sonho, Edgard, um bem-sucedido empresário, que não consegue se relacionar com pessoas, a menos que estas se portem como objetos e possam ser comercializadas. Assim, conhecemos suas idas e vindas em uma sociedade em que nada acontece além da busca pelo lucro e seu relacionamento mercantil com a esposa e os filhos.
Na última parte, Edgard cede seu espaço para um jovem de 30 anos, alterego de Guy, que chega a Lisboa e enfrenta todas as dificuldades de um estrangeiro em uma Europa cada dia mais xenófoba. A xenofobia é um tema que aparece todos os dias nos jornais e o crescimento dos grupos neonazistas nos deixa claro que ele está mais vivo do que nunca.
Um detalhe curioso sobre o livro é que eu o havia adquirido e não o tinha lido. Quando fui premiado com o PAC da Secretaria de Cultura do estado de São Paulo e estava procurando uma editora, recorri à uma leitura rápida do primeiro capítulo do romance, para me certificar que a Ficções tinha um certo critério de qualidade para suas publicações. Foi aí que tive a certeza que queria publicar por essa editora. No site da Ficções está publicado o primeiro capítulo do romance de Guy Corrêa.
Ah, sobre o título. Por que Hóspede perplexo? Nas palavras do próprio Guy, com quem troquei algumas mensagens para melhor compreender os objetivos de sua obra: "Os personagens têm mesmo esse caráter transitório, de hóspedes do mundo. O leitor também se hospeda nas páginas de livros." Não podemos nos esquecer também que um dos significados para "hóspede" é o de estrangeiro que visita ou viaja em um determinado país.

Trecho

Tinham partido havia menos de uma hora - a viagem carregava consigo a promessa de brevidade. Dois rapazes magriços, polarizados no meio da embarcação, faziam movimentos sincronizados com os remos, torvelinhando aquelas águas, transportando aquela gente sofrida, rumo a algum ponto remoto de uma praia, no lado oposto do estreito. Agiam esses remadores como profissionais e isso era mesmo verdade. Havia ainda um terceiro homem na proa do barco, motivado por alguma pequena quantia em dinheiro, que supervisionava o movimento dos dois; vestido com um conjunto safári bege e calçando um par de tamancos, ele libertava uma expressão rude e ainda vasculhava os 360 graus da porção de mar que os circundavam com o auxílio de um binóculo. A noite tinha se dissolvido, mas a claridade do dia não carregava consigo a almejada nitidez, pelo contrário, uma névoa foi se instalando com tamanha violência até conseguir alterar o semblante da tripulação que semanalmente fazia esse serviço.

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