26 de janeiro de 2009

Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, é uma espécie de continuação de Ensaio sobre a cegueira. A história se passa quatro anos após a cegueira branca ocorrida em Portugal. Acho notável como Saramago doa diálogos improváveis a determinadas personagens - mesmo uma secretária é capaz das mais complexas meditações.

Diga por favor aos jornais e à gente da televisão e da rádio que não deitem mais gasolina na fogueira, se a sensatez e a inteligência nos faltam, arriscamo-nos a que tudo isto vá pelos ares, deve ter lido que o director do jornal do governo cometeu hoje a estupidez de admitir a possibilidade de que isto venha a terminar num banho de sangue, O jornal não é do governo, Se este comentário me é permitido, senhor ministro, teria preferido outro comentário seu, O homenzinho excedeu-se, passou as marcas, acontece sempre que se quer apresentar mais serviço que aquele que foi encomendado, Senhor ministro, Diga, Que faço finalmente com os empregados do serviço municipal de limpeza, Deixe-os trabalhar, dessa maneira a câmara municipal ficará bem vista aos olhos da população e isso poderá ser-nos útil no futuro, além do mais, há que reconhecer que a greve era só um dos elementos da estratégia, e de certeza não o de maior importância, Não seria bom para a cidade, nem agora nem no futuro, que a câmara municipal fosse utilizada como uma arma de guerra contra os seus munícipes, A câmara não pode ficar à margem de uma situação como esta, a câmara está neste país e não noutro, Não estou a pedir que nos deixem à margem da situação, o que peço é que o governo não ponha obstáculos ao exercício das minhas competências próprias, que em nenhum momento queira dar ao público a impressão de que a câmara municipal não passa de mais um instrumento da sua política repressiva, com perdão da palavra, em primeiro lugar porque não é verdade, e em segundo lugar porque não o será nunca, Temo não o compreender, ou compreendê-lo demasiado bem, Senhor ministro, um dia, não sei quando, a cidade voltará a ser a capital do país, É possível, não é certo, depende de até onde queiram chegar com a rebelião, Seja como for, é preciso que esta câmara municipal, comigo aqui ou com qualquer outro presidente, jamais possa ser olhada como cúmplice ou co-autora, mesmo que apenas indirectamente, de uma repressão sangrenta, o governo que a ordene não terá outro remédio que aguentar-se com as consequências, mas a câmara, essa, é da cidade, não a cidade da câmara, espero ter sido suficientemente claro, senhor ministro, Tão claro que lhe vou fazer uma pergunta, Ao seu dispor, senhor ministro, Votou em branco, Repita, por favor, não ouvi bem, Perguntei-lhe se votou em branco, perguntei-lhe se era branco o voto que pôs na urna, Nunca se sabe, senhor ministro, nunca se sabe, Quando tudo isto terminar, espero vir a ter consigo uma longa conversa, Às suas ordens, senhor ministro, Boas tardes, Boas tardes, A minha vontade seria ir aí e dar-lhe um puxão de orelhas, Já não estou na idade, senhor ministro, Se alguma vez vier a ser ministro do interior, saberá que para puxões de orelhas e outras correcções nunca houve limite de idade, Que não o ouça o diabo, senhor ministro, O diabo não tem tão bom ouvido que não precisa que lhe digam as coisas em voz alta, Valha-nos então deus, Não vale a pena, esse é surdo de nascença.

Trecho de "Ensaio sobre a lucidez", de José Saramago.

Um comentário:

João Braga disse...

É muito curioso o autor do texto referir Saramago na introdução e utlizar a expressão, "banho de sangue", logo no começo.

Fez-me lembrar um editorial que o autor dos tão mediáticos ensaios, sobre a cegueira e a lucidez, já se tenha esquecido de outro "ensaio" que assinou, juntamente com Mário Ventura Henriques, no Diário de Notícias, em Março de 1975, sobre a crueldade, que intitulou precisamente de "Banho de Sangue" e no qual pedia o fuzilamento de todos quantos se opunham -- quase o país inteiro -- à instauração de uma estalinsta ditadura do proletariado.

Valeu-nos na altura o bom senso de uns tantos militares, Melo Antunes, Ramalho Eanes, Vítor Alves e Vasco Lourenço, que travaram a "boleia" que outros camaradas seus das casernas queriam apanhar das palavras, cegas de raiva, do autor de "Memorial do Convento".

Terá sido por este "Memorial do Fuzilamento" que lhe entregaram o Nobel? Já tenho lido perguntas muito mais ingénuas.

João Braga