18 de novembro de 2008

Este calor, este calor, eu repetia sentado debaixo de uma sombra, nos arredores do terreiro de galos de rinha, enquanto passeavam em volta galinhas d'angola, preciosidades do dono do terreiro. Este calor, este calor, eu repetia ali, sentado, conforme vi em estampas da minha infância, com um pedaço de pau na mão, escarafunchando na terra, tendo ao lado um formigueiro medonhamente grande, o sol quem sabe em seu zênite, o caboclinho da estampa da minha infância talvez fosse mais feliz, havia aquele sorriso das estampas da infância, sorri também, resolvi entrar também nessa do sorriso, um sorriso esgazeado, um sorriso para tudo e para nada, e vi uma cobra serpenteando o formigueiro, me perfilei automático, mesmo sem me levantar me perfilei, e o sorriso ali, intacto, para tudo e para nada, para a cobra inclusive, pensei, este sorriso vai para a cobra também, para a cobra este sorriso vai, vai sim, vai para essa imensa cobra que pretende se aconchegar aos meus pés - súbito bati com aquele pedaço de pau na cobra, duas, três vezes, quatro, paulada e mais paulada, e a cobra se partiu em dois, três, quatro pedaços, e o sangue em torno era escuro, quase preto, e a terra ao redor de mim, a terra como eu nunca imaginara antes tremeu, tremeu sim, tremeu no duro, de verdade, um tremor de terra, e deu para perceber que alguma coisa no alto ia despencar em cima da minha cabeça, e depois disso não me perguntem mais nada, porque de nada adiantaria mentir que vi, que remexi, que aconteci.

João Gilberto Noll (1946 - ), em Harmada. O romance é tão bom quanto "A fúria do corpo". Não há uma história propriamente dita, mas vou transcrever o que está escrito na orelha: "Um ex-ator, escondido num asilo para mendigos, consola-se com o projeto de uma peça de teatro. Ele quer retornar a Harmada, a capital de seu país, mas se vê retido em uma paralisia na qual só a arte o ampara."

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