Quando um escritor leva o Nobel de Literatura, todo mundo fica desconfiado. Porque o prêmio tem forte conotação política. Então nos perguntamos: será que existe aí alguma qualidade literária? Certa vez Daniel Piza foi muito apressado ao criticar Herta Müller, baseando-se no único livro dela lançado no Brasil até então, "O compromisso", traduzido por Lya Luft. Escrevi a ele, argumentando que ele não podia ir tão longe tendo lido apenas um romance da romena. Ficou bravo, bateu o pé e ficou por isso mesmo.
Antônio Cândido defende que uma tradução ruim não consegue matar uma boa obra. Não acredito nisso. Convenhamos que o trabalho da Luft em cima dos originais de Herta Müller quase chegou lá. Discuto há pouco com meu amigo Ronaldo Cagiano que, como escritores, temos a obrigação de conhecer profundamente uns 3 ou 4 idiomas e, superficialmente, outros 3 ou 4. Antes de ler qualquer tradução, e digo isso sem arrogância, dou uma folheada nos originais. Comparo. Se estiver tudo ok, prefiro ler em português. Então, sobre a transposição da Carola Saavedra, não há o que temer. Ela conhece bem a língua alemã e ainda consegue imprimir a sua assinatura, sem mascarar o estilo de Herta Müller. Alguns trechos ficaram confusos, quase ininteligíveis, mas anda que comprometa o conjunto.
A ressalva fica por conta do título. Parece-me que a Cia das Letras optou pela tradução do título inglês, o que é uma pena. O original "Atemschaukel" virou "Tudo o que tenho levo comigo", retirado do primeiro parágrafo do livro:
Alles, was ich habe, trage ich bei mir.
Herta Müller é uma escritora maravilhosa e este livro é uma prova disso. Primeiro, o estilo: frases curtas, secas, sonoras. Capítulos curtos, quase pequenos contos, que entrelaçados viram um romance. Um texto lírico. Enxuto? Não, de jeito nenhum. Rejeito veementemente o adjetivo. Como uma obra pode ser enxuta se trata, em suas quase 300 páginas quase exclusivamente da fome?
Li vários e vários livros que tratam do holocausto e, na minha ignorância, achei que esta obra de Herta Müller ia se ocupar deste mesmo assunto. Meu preconceito veio do fato de que considero complicada a tarefa de extrair algo de bom de um tema que já rendeu tantos e tantos parágrafos. Só que "Tudo o que tenho levo comigo" fala do pós-holocausto, da perseguição que Stálin empreendeu após o término da Segunda Guerra.
Assim, Leo Auberg, um alemão de dezessete anos, homossexual, se vê, sem motivo aparente (mais tarde descobre que faz parte de uma minoria, por isso foi punido), obrigado a passar vários anos como escravo em um campo de trabalhos forçados. Mas não há uma narrativa convencional, a história nos chega em devaneios, em momentos de extrema privação. Praticamente não existem diálogos, porque num lugar como o que Auberg cai, a intimidade pode significar fraqueza e fraqueza é sentença de morte.
No livro, o termo Atemschaukel aparece algumas vezes e é traduzido como "o balanço da respiração", o que não deixa de ser uma metáfora para esse movimento praticamente involuntário que nosso peito faz quando sugamos o ar da sobrevivência. É a metáfora perfeita para a luta de um ser humano em uma condição de miséria, porque é aí, é nesta agitação do peito que alguém se lembra de sua humanidade.