8 de março de 2010

Elvira Vigna, Nada a dizer


          A classe média granjeou, há algumas décadas, o direito à liberdade sexual, mas até hoje ainda não aprendeu o que fazer com essa conquista. Verdade q a hipocrisia que imperava antigamente entre os casais se converteu em um justificável, porém nada franco, chumbo trocado. Ninguém é de ninguém, já defende a música. Entretanto, ainda existem o sonho (sobretudo feminino) do véu e da grinalda, dos filhos quebrando a casa e da constituição de uma cellula mater. O egoísmo, que não deixará de existir, porque é uma condição humana.
          No último romance de Elvira Vigna, Nada a dizer, lançado pela Companhia das Letras, em fevereiro de 2010, a narradora tenta esmiuçar o pensamento feminino a respeito da traição. Com uma dose de proselitismo, ela pretende nos ensinar que o homem trai com maior facilidade. O que parece até ser verdade. Uma mulher de meia idade, que parece já ter passado dessa meia idade, apresenta ao leitor os detalhes de uma traição. Uma não, duas. A primeira, contudo, não conta, o marido Paulo, resolve dar uma escapa de uma tarde com uma garota de programa. O medo da narradora, de resto como parece ser o temor de toda mulher dessa classe média-alta é o do envolvimento. Por isso que, quando surge N. na vida de ambos, a coisa complica, porque N. acaba se configurando em um caso, logo em uma competidora, em um fato que faz com que se questione o comodismo que se tornou o cotidiano dessa sociedade mesquinha. Mesmo a narradora apostando que N. não tem grandes chances de fundar uma família com seu marido, permanece como uma competidora, porque apresentou à narradora a fragilidade de uma instituição que julgava forte o bastante para subjugar o lugar-comum da falta de intimidade.
          Para a narradora, parece não haver problema nenhum que ambos tenham saído de casamentos fracassados para montar esta outra família, construída de estilhaços de crenças anteriores (e ultrapassadas). O que interessa é o autoconhecimento, mas também é importante o conhecimento do outro, com quem divide a cama há vários anos. Nada a dizer resume o silêncio que facilita a vida - explicar é complicado, o melhor é ir levando. O bom é que a narradora reconhece seu erro na história: cobra demais, força demais uma proximidade que Paulo não deseja a todo instante.
          Elvira Vigna faz a sua personagem esmiuçar os traumas que a infidelidade de Paulo e N. gerou em seus respectivos cônjuges. Porque não é possível que só a esposa de Paulo fosse inteligente e somente ela tenha descoberto a traição. Mas é um acerto de contas consigo mesma, que vai agradar sobretudo as leitoras, porque, apesar da prosa direta e envolvente, diz mais respeito a elas. Um homem pode até tirar lições da história (embora não seja este o objetivo da autora e nem é o da literatura), mas não vai mudar. É a condição humana a que me referi lá atrás.
          O livro começa delineando com precisão o avanço dos acontecimentos, o que pode ser constatado nas datas - o romance inicia com um "16 de novembro". Quem é que pode acreditar em uma perdão se a mulher rastreia com essa pontualidade (em alguns trechos nem a hora faltou) os passos em falso do marido? Quando tudo parece se cicatrizar, a narradora vai amenizando essa obsessão e as datas passam a ser mais vagas - um "agosto", um "setembro" indiferente. É o processo de redenção e esquecimento.
          Há muito sexo em todo o livro e ele não tem aquela leveza sentimental dos apaixonados, é material, quase uma outra personagem. Tem o caráter de prazer, de descanso, e, pode-se notar nas entrelinhas, que é uma das razões do silêncio. O sexo em si, o momento em que é consumado, não requer diálogos elaborados, sendo, portanto, um instante de fuga. Quando não queriam conversar, corriam para a cama. Talvez o maior ganho dessa geração tenha sido justamente o prazer sem culpa (embora somente com o parceiro do momento).
          Nada a dizer é um livro inquietante. Só o fato de eu levantar tantas dúvidas sobre os ideais que a narradora defende, já o atesta. Auxiliada por uma escrita exata, que gasta o tempo necessário com digressões, Elvira Vigna se impõe como uma escritora que sabe para onde conduzir seu leitor. Só não concordo com um trecho da orelha: "Uma das argúcias da autora é mimetizar a prosa confessional de autoexposição, tão em voga nos nossos dias." Afirmar que Vigna mimetiza uma prosa confessional é diminuir sua obra, porque é justamente na confissão da narradora, na dúvida que deixa sobre o que é biográfico e o que não é que se encontra a grandeza de sua literatura.