2 de junho de 2010

O deus brincalhão, Gilberto G. Pereira

“Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.” Jorge Luis Borges (As ruínas circulares)



“No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. (...) E o verbo se fez carne e habitou entre nós.” Embora haja semelhanças, Este que aparece no Evangelho de João não é o deus crivado nas palavras da mais recente publicação do mineiro Whisner Fraga, O livro da carne (7 Letras, 2010, 80 páginas). Aqui, quem reina é um deus brincalhão, embora também saiba dar sua cota de tragédia e drama. É um deus cheio de poesia mundana, atada por tiras de fibra sagrada.

Mas também a Bíblia é um longo poema da criação, alguém pode argumentar com autoridade. E por isso mesmo, ao largo dos versos de Fraga, o sujeito poético, neste caso, o próprio deus, está imbuído de propriedades divinas do Velho Jeová e até de Cristo. No entanto, o espaço lúdico construído na geografia poética de O Livro da Carne oferece uma multiplicidade de sonhos e desejos, um turbilhão de rebeldia e senso de desconstrução, que vão além desses deuses ultrapassados.

Não é raro, neste livro insólito, o leitor se deparar com versos que renegam a velha tradição, ou que retiram dela o substrato de sua verdade, para recriar a vida, para partir praticamente do zero e criar de novo os ossos, os nervos, a carne, e talvez a inteligência. Mas aí já é exigir demais de um deus.

Os poemas são uma espécie de receita, ou ordem, conselho, todos nascem do imperativo, todos giram em torno de verbos no infinito, que é a potência determinante da linguagem verbal. “Empalhar deuses”, diz um verso. “Tolerar as feridas chamuscadas de lodo/ De deuses sem fé/ E sem divindade”, dizem outros versos. “Dois deuses cochilam no assoalho do criado”, observa o sujeito poético em outro poema.

Em “Roteiro para empreender a fuga”, vemos um exemplo de como a ideia de evangelho, ainda esconsa no testamento anterior, está inserida, como quem faz o mesmo caminho messiânico já conhecido, só que em outra dimensão. “Reter o vão/ Chacoalhar guizos de canduras/ Afivelar saudades/ Olhar derradeiro as disposições dos trigos/ recolher as tranças das rosas/ Beirar a ânsia de conter o então/ E depois.”

O desfecho do poema, que pode sugerir Moisés e seu séquito, é cheio de graça mundana, cheio de riso, quase uma pilhéria, mas, ao mesmo tempo, carregado de perplexidade e uma vontadezinha de ficar, de não ir embora: “Levar também a chave/ Para um possível retorno.”

Os títulos de cada poema são índices voltaicos que ajudam o leitor a penetrar o universo da criação desse deus que muitas vezes é puramente infantil, um deus menino. “Receita para dividir o vento”, “Roteiro para edificar o nada”, “Para ninar espíritos”, “Para prolongar infâncias”. É assim que vemos um desfile de propostas nascentes.

O arco e a lira

Uma dessas propostas explora com vigor poético a imagem de um personagem caro ao Deus hebreu e cristão, mas que também não tira o pé do terreno infantil, do imaginário de uma infância altiva e que já sabe planejar. É um poema que vale ser posto em sua totalidade aqui para a devida apreciação:

“Para escolher forquilhas”

Optar pelo galho mais alegre
De goiabeira de fim de cinza
De noite arredia
E sacis xeretas
Enfim se decidir pelo corte:
Improvável cumprir completo a vida
Esticar braços condoídos
Para teste da melhor goma
E divertir dos amigos
A penúltima manhã amarela
Não alvejar canários ou azulões
Nem estrelas
Acolher o travesseiro o estilingue
Ao presságio de outras guerras.


Quem traça esse plano não é um garoto, mas é. É e não é. É um deus menino que parece dar à luz a infância de um guerreiro, cuja primeira arma é o estilingue. Uma funda. Estamos diante de um vir-a-ser de Davi. É a recriação de um guerreiro caro a Jeová, por que ele soube conduzir o povo de Israel, embora tenha sido controverso e tenha decepcionado seu Senhor.

Este Davi, tal como aparece aqui, não está na Bíblia, claro, é fruto do novo deus. Mas seu futuro é vencer outro Golias. Sua tarefa é dormir e sonhar com a batalha e a vitória que virão. O que deve ser enxergado nesse poema, como construção poética, é essa imagem buscada, ou rebuscada, entre os objetos de infância do poeta, mas não só isso, entre elementos da cultura brasileira, do imaginário da cultura popular tupiniquim.

É bom lembrar que a literatura de Fraga faz dos mitos uma ferramenta afiada para esculpir os signos atuais. Nestes poemas de O livro da carne, o que vemos é uma extensão temática de sua prosa. Muitos versos remetem a personagens e situações já trabalhadas em livros anteriores, como Helena, que está em Abismo poente.

Sua marca segue a tradição poética. Não se alcança o significado polissêmico proposto sem a perseguição do ritmo e a disposição das palavras, suas formas dançantes e troca de sílabas ressoantes entre uma palavra e outra. Esta poesia, cheia de brincadeiras, esta experimentação poética, como um deus que brinca de criar, tem muito daquilo que se chama de sentido logopeico, em que se fincam significados substanciais.

Abismo

A denominação conceitual trabalhada por Ezra Pound nos ajuda, e muito, a fixar significados aqui. Em O livro da carne, além dos recursos vocabulares, há também a riqueza da melopeia (musicalidade) e, principalmente, a exploração fosfórica da fanopeia (condensação poética que forja o significado por meio da sugestão de imagens), porque é por ela que encontramos as figuras mais fulminantes deste livro.

Como em “Receita para tolerar a miséria do voo”:

Contra o viço e o alvoroço resedá
A transição do peito engatilhado
Atenuar a voracidade do húmus
O hostil e inquieto rumor de precariedades
O disparo vermelho
O tambor com seus desgostos giratórios
E o projétil da vez
O pulso mortificado pelo curso vacilante
Que já nem denuncia uma pista da vida
Como urubus camicases.


Depois de várias receitas sobre como criar um novo mundo de gente mais humana, resgatando um projeto divino que falhou, que malogrou entre todos os deuses do passado, o sujeito poético aparece com uma receita de acabamento final, uma sugestão de suicídio. “Receita para tolerar a miséria do voo” é, por isso mesmo, um dos poemas mais interessantes do livro, porque chega como uma espécie de abertura para o abismo da existência, porque emerge como chave para fechar o que havia sido aberto como possibilidade.

Em todo O livro da carne, as temáticas rondam os poemas como uma engrenagem de moinho. No entanto, o mais interessante é que muitas vezes as palavras dançam no interior do poema, como acontece em “Receita para tolerar a miséria do voo”. O desenho do suicídio vai surgindo justamente nessa dança fúnebre dos vocábulos.

Além do metralhar onomatopaico de ‘contra, alvoroço, transição’, e inversões silábicas entre ‘atenuar’ e ‘voracidade’, o leitor segue o drama macabro com os termos “peito engatilhado”, “rumor de precariedades” (que é a própria vida), “disparo vermelho”, “tambor” (do revólver), “projétil” e a execução final, em que o pulso fenece e já não há mais vida.

Os últimos versos desenham bem a beleza mortífera do poema: depois do tiro, o pulso, aquele que poderia conferir a vida, está como urubus camicases. O termo “urubus camicases” faz o leitor levantar os olhos e reparar o título. Ele vê ali “miséria do voo”, e se baixar vertiginosamente as vistas completará “miséria do voo da vida” e sentirá o baque da queda.

Os urubus voam alto, e só descem para saborear a morte dos outros, para comer carcaças, carniças, mas ainda assim, dão pista de vida, pelo menos a deles próprios, ou, em última hipótese, indicam que houve ali uma vida. Mas urubus camicases são urubus suicidas, eles descem do céu, em voos fulminantes, para, hipoteticamente, se racharem no chão. Não há mais nada.

Sopro de verbo

Em O livro da carne, possibilidades são o que não faltam aos poemas, que, junto ao lirismo, oferecem versos de violência e ternura, como quem quer abarcar a vida toda. Tudo é uma tentativa. A começar pela proposta de fazer versos com verbos no infinitivo para quase todas as peças. Entre uma página e outro, há ideias micros e projetos macros. Neste sentido, é um livro repleno de mundos e sonhos, em que a natureza humana se aproxima de novo da Natureza. E a magia, a artimanha, está presente em cada sopro de verbo.

Como autor, Fraga carrega uma luz literária peculiar. Escreve com absoluta consciência. E isso é bom. Para quem gosta de referências, há aqui algo que lembra Manoel de Barros. Mas parece que suas fontes estão num passado mais longínquo, como a Bíblia, a mitologia, as verdades religiosas, desbancadas em cada uma das receitas poéticas.

Estas receitas riem da febre de livros de autoajuda que inundaram o mercado editorial nos últimos anos. Mas também, se seguirmos o ritmo dos versos, sentiremos uma sensação de que estamos orando, fazendo uma prece. São preces poéticas, que acabam contrariando o sentido da vida na religião. É um novo religare. Coisa que se faz muito na literatura. Aliás, no fim das contas, a literatura é isso, uma espécie de religião ao contrário, cujos deuses são humanos demais, próximos demais de cada leitor.

Acompanhando os versos, o leitor pode chegar a uma conclusão. Talvez essas regras, essas recomendações, ou ordens presentes em O livro da carne, sejam para ele mesmo, para o próprio deus propositor da nova existência. Talvez essa escritura seja como bilhetes na porta da geladeira que as pessoas solteiras e que moram sozinhas deixam, na desculpa de ter pouca memória, mas que, no fundo, é para travar um diálogo consigo mesmas, diálogos para espantar a solidão. Todos os deuses estão sós.
(Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, 30/05/2010)

Serviço

Título: O livro da carne
Autora: Whisner Fraga
Editora: 7 Letras, 2010, 80 páginas
Gênero: Poesia
Preço: R$ 28,00

6 de maio de 2010

O legado de Eszter



Minha ideia inicial era falar de algum livro do Georges Perec, mas depois de ter lido "De verdade" do escritor austro-húngaro Sándor Márai (1900 - 1989), resolvi falar um pouco deste sujeito corajoso, que deu um tiro na própria cabeça aos 89 anos. O legado de Eszter é um ótimo livro, mas não é o melhor de Márai. Nele, Eszter é uma mulher beirando a terceira idade, apaixonada por um malando, Lajos, que se casou com sua irmã. Vinte anos longe e o camarada resolve retornar para  uma visitinha de um dia. O forte do romance, como em todas as demais obras de Sándor, é a construção das personagens. O escritor não poupa ironia e sagacidade ao retratar o lado mesquinho dos relacionamentos e o faz de maneira poética, contida e precisa.

19 de abril de 2010

Livro da carne

Saiu. Esta semana começa a chegar às livrarias meu novo livro. O primeiro de poesias. Coloquei alguns exemplares na Estante Virtual a preços bem módicos. Este livro é um projeto paralelo, no qual vinha trabalhando desde 2002. Várias poesias foram publicadas naquelas agendas que o PSTU vende. Isso desde 2003. Só que eu as retrabalhei e foram publicadas de modo diferente neste livro da carne. A capa ficou muito bonita, na minha opinião e todo o projeto gráfico de tirar o chapéu. O texto da orelha ficou por conta do Paulo Bentancur.

8 de março de 2010

Elvira Vigna, Nada a dizer


          A classe média granjeou, há algumas décadas, o direito à liberdade sexual, mas até hoje ainda não aprendeu o que fazer com essa conquista. Verdade q a hipocrisia que imperava antigamente entre os casais se converteu em um justificável, porém nada franco, chumbo trocado. Ninguém é de ninguém, já defende a música. Entretanto, ainda existem o sonho (sobretudo feminino) do véu e da grinalda, dos filhos quebrando a casa e da constituição de uma cellula mater. O egoísmo, que não deixará de existir, porque é uma condição humana.
          No último romance de Elvira Vigna, Nada a dizer, lançado pela Companhia das Letras, em fevereiro de 2010, a narradora tenta esmiuçar o pensamento feminino a respeito da traição. Com uma dose de proselitismo, ela pretende nos ensinar que o homem trai com maior facilidade. O que parece até ser verdade. Uma mulher de meia idade, que parece já ter passado dessa meia idade, apresenta ao leitor os detalhes de uma traição. Uma não, duas. A primeira, contudo, não conta, o marido Paulo, resolve dar uma escapa de uma tarde com uma garota de programa. O medo da narradora, de resto como parece ser o temor de toda mulher dessa classe média-alta é o do envolvimento. Por isso que, quando surge N. na vida de ambos, a coisa complica, porque N. acaba se configurando em um caso, logo em uma competidora, em um fato que faz com que se questione o comodismo que se tornou o cotidiano dessa sociedade mesquinha. Mesmo a narradora apostando que N. não tem grandes chances de fundar uma família com seu marido, permanece como uma competidora, porque apresentou à narradora a fragilidade de uma instituição que julgava forte o bastante para subjugar o lugar-comum da falta de intimidade.
          Para a narradora, parece não haver problema nenhum que ambos tenham saído de casamentos fracassados para montar esta outra família, construída de estilhaços de crenças anteriores (e ultrapassadas). O que interessa é o autoconhecimento, mas também é importante o conhecimento do outro, com quem divide a cama há vários anos. Nada a dizer resume o silêncio que facilita a vida - explicar é complicado, o melhor é ir levando. O bom é que a narradora reconhece seu erro na história: cobra demais, força demais uma proximidade que Paulo não deseja a todo instante.
          Elvira Vigna faz a sua personagem esmiuçar os traumas que a infidelidade de Paulo e N. gerou em seus respectivos cônjuges. Porque não é possível que só a esposa de Paulo fosse inteligente e somente ela tenha descoberto a traição. Mas é um acerto de contas consigo mesma, que vai agradar sobretudo as leitoras, porque, apesar da prosa direta e envolvente, diz mais respeito a elas. Um homem pode até tirar lições da história (embora não seja este o objetivo da autora e nem é o da literatura), mas não vai mudar. É a condição humana a que me referi lá atrás.
          O livro começa delineando com precisão o avanço dos acontecimentos, o que pode ser constatado nas datas - o romance inicia com um "16 de novembro". Quem é que pode acreditar em uma perdão se a mulher rastreia com essa pontualidade (em alguns trechos nem a hora faltou) os passos em falso do marido? Quando tudo parece se cicatrizar, a narradora vai amenizando essa obsessão e as datas passam a ser mais vagas - um "agosto", um "setembro" indiferente. É o processo de redenção e esquecimento.
          Há muito sexo em todo o livro e ele não tem aquela leveza sentimental dos apaixonados, é material, quase uma outra personagem. Tem o caráter de prazer, de descanso, e, pode-se notar nas entrelinhas, que é uma das razões do silêncio. O sexo em si, o momento em que é consumado, não requer diálogos elaborados, sendo, portanto, um instante de fuga. Quando não queriam conversar, corriam para a cama. Talvez o maior ganho dessa geração tenha sido justamente o prazer sem culpa (embora somente com o parceiro do momento).
          Nada a dizer é um livro inquietante. Só o fato de eu levantar tantas dúvidas sobre os ideais que a narradora defende, já o atesta. Auxiliada por uma escrita exata, que gasta o tempo necessário com digressões, Elvira Vigna se impõe como uma escritora que sabe para onde conduzir seu leitor. Só não concordo com um trecho da orelha: "Uma das argúcias da autora é mimetizar a prosa confessional de autoexposição, tão em voga nos nossos dias." Afirmar que Vigna mimetiza uma prosa confessional é diminuir sua obra, porque é justamente na confissão da narradora, na dúvida que deixa sobre o que é biográfico e o que não é que se encontra a grandeza de sua literatura.

2 de fevereiro de 2010

troia


Quando eu comento por aí que reescrevo um conto, não quero dizer que só faço alguns cortes, de palavras e de frases. Além disso, eu acrescento parágrafos, mudo o roteiro, o final, a trama, o que for preciso. Tem esse conto, que escrevi em 2000, que se chamava "o homem de meia cidade", e que me persegue e venho reescrevendo-o desde então. A última versão pode ser conferida no jornal "A união", suplemento "Correio das artes", de 09 de janeiro de 2009.

18 de janeiro de 2010

Ninguém me verá chorar



Quem me sugeriu a leitura deste livro foi o poeta e amigo Osvaldo Rodrigues. Se você desejar ver o sujeito em ação, é só clicar aqui. Primeiro a autora: Cristina Rivera Garza - mexicana, nascida em 1964, estudiosa da história de seu país. Sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Houston, tem como título "The masters of the streets. Bodies, power and modernity in Mexico, 1876 - 1930, em que trata do mundo das ruas, do manicômio e outras instituições de controle social no México porfiriano e na alvorada da pós-revolução. Boa parte deste seu romance "Ninguém me verá chorar" trata deste assunto.
Um dos méritos de Cristina é não misturar o estilo do ensaio com as regras da ficção. Seu livro é, definitivamente, uma obra de ficção. Claro que os dados históricos, que servem de pano de fundo para sua trama, são precisos, mas envoltos por um estilo discreto e elegante, em que são deixados de lado o sentimentalismo e a saída fácil, em detrimento daquilo que deseja narrar.
A epígrafe dá uma dica do que o leitor encontrará nas páginas da obra:
"Esta paciente apresenta bom comportamento. Gosta de trabalhar, é dedicada e tem bom caráter. A paciente fala muito, este é seu distúrbio." (Estudo psicopatológico da paciente Matilda Burgos, do pavilhão das tranquilas, primeira parte).
A pesquisadora, ao se deparar com este documento, resolve criar uma explicação para a estadia de Matilda Burgos no sanatório. E se sai muito bem. Como Cristina Rivera quer contar uma história de amor, será o amor - seja a uma mulher, ao país, ao caos - a danação de todas as personagens da obra. É época de revolução, um período em que tudo é possível e a desgraça inevitável. Apaixonar-se nestes tempos é arriscado e Matilda não teme os riscos. Quando se torna prostituta, é sem remorso que assume a função, é com um sentimento de inevitabilidade e de reverência a uma força maior, a necessidade. Cristina consegue se isolar, deixa com que todos sigam seu destino de tragédias, o que é raro. Ela procura e quase sempre consegue não interferir nas ações das personagens. É um mérito e tanto.

Trecho:


Há certas coisas em Matilda que o divertem. Seu nervosismo, sobretudo. O ruído de sua saia quando passa perto dele. A maneira com que seu olhar se perde por motivos desconhecidos a ele. O que ela vê? Como? Com o passar dos dias, acostuma-se às suas mudanças de humor, às marés súbitas de sua energia: os dias exaltados, seguidos rapidamente por dias tristonhos. Há horas em que Matilda é incapaz de permanecer sentada sem fazer nada. Presa de uma atividade febril, limpa o chão, remenda cortinas ou se põe a ensaiar passos de dança ditados por sua imaginação. Fala sem parar e as palavras se atropelam por trás dos dentes. Ri às gargahadas. Em seguida, sem aviso, sem motivo aparente, á dias inteiros que não muda de posição. Joaquín a alimenta, lava de vez em quando sua roupa e esquenta a água para o chá ou café. Somente ele vai à cidade. Pouco a pouco, dentro do silêncio da casa sem móveis, ele está se tornando o marido da baunilha.


Ninguém me verá chorando (Nadie me verá llorar), Cristina Rivera Garza. Editora Francis, 2005. Tradução de Ledusha B. A. Spinardi. 264 páginas.