24 de dezembro de 2009
Dramaturgo e pianista
Pulp fiction. O termo se notabilizou graças ao filme homônimo de Tarantino. Sugere uma literatura barata, o que pode confundir o leitor. Barata no sentido de ser impressa em papel de baixa qualidade para diminuir custos. Não quer dizer, absolutamente, falta de qualidade. Aliás, há obras-primas entre esses livros. Lia uma matéria na Folha de São Paulo sobre os quatro tiros que o Mário Bortolotto levou em um boteco da Praça Roosevelt quando resolvi escrever este post. Na reportagem, a autora dizia que Bortolotto se inspirou no livro "Atire no pianista", de David Goodis para dar o título ao seu blog: "Atire no dramaturgo". Não conhecia nada da obra de Goodis, então corri atrás.
Na capa da obra, editada em 1984 pela Abril Cultural (lançado originalmente pela Gawcett Publications, em 1956), pode-se ler: "O lirismo da violência, da solidão e do terror". Perfeita descrição da obra. No livro é possível medir a densidade de sangue por página, há tiro em cada parágrafo, mas há também uma literatura envolvente, um lirismo a toda prova. David Goodis consegue prender o leitor. Eu mesmo não queria largar o livro antes do final.
A este respeito, andei lendo umas críticas negativas sobre o novo livro de António Lobo Antúnes. A justificativa: um livro difícil. Ora, parece que estão confundindo tudo. "Atire no pianista" é um livro fácil, fácil demais até e mesmo assim não é uma obra de baixa qualidade. Tem lá seus muitos méritos. A questão é: Goodis não quis fazer um livro difícil, quis escrever um romance que prendesse o leitor e ponto final. No meio disso, há frases de impacto, uma literatura bem feita, com uma história muito bem construída e ponto.
Na "Pulp fiction" sempre há crimes. Há um mocinho que tenta ficar com a mocinha, mas não vai conseguir, porque no final prefere o álcool, prefere a solidão ou esta inevitavelmente o persegue. Em "Atire no pianista" não é diferente - Eddie é um virtuose que trabalha em uma espelunca chamada "Taverna da Harriet". O que um sujeito desses faz num boteco tão sórdido? É o enigma do livro, que vai sendo decifrado pouco a pouco. E a explicação é plausível, comovente até.
A tradução não está lá essas coisas. Para dar um exemplo, em determinado parágrafo eu contei cinco verbos "ouvir" - dois deles na mesma frase. Imperdoável. Fui conferir no original "Down there" e não é nada disso. A elegância a que me referi está lá com todas as letras. É claro que o Bortolotto é um boêmio, assim como Eddie e tenta ressuscitar a Praça Roosevelt com seu talento e seus amigos artistas. No fundo é um sentimental, que não dá valor ao dinheiro, como Eddie. Talvez apenas por motivos diferentes. Li por aí que fez errado ao enfrentar os bandidos para proteger os amigos. Eu não sei, sinceramente não sei. Acho que buraco é mais fundo, só isso.
Em "Atire no pianista" há um negócio bem interessante: Goodis transcreve os pensamentos de Eddie, que são sempre conflituosos. O que ele pensa nunca é o que faz. Só por isso o romance já valeria a pena.
Um trecho da tradução de Ubirajara Forte:
"Fui eu?", perguntou Eddie a si mesmo. "Fui realmente eu? Sim, fui. Mas, não pode ser. Eu sou o Eddie. Eddie não faria uma coisa dessas. O homem capaz disso era aquele vagabundo, que já não existe há muito tempo, o selvagem, cuja bebida favorita era o próprio sangue, cujo prato favorito eram os vadios da Cozinha do Inferno, os desordeiros da rua Bowery, os arruaceiros de Greenpoint. Mas isso fazia parte de outra cidade, outro mundo. No mundo ao qual Eddie pertence, ele senta-se ao piano, toca sua música, indiferente a tudo. Então por que..."
PS: Feliz Natal a todos. Deem livros de presente.
9 de dezembro de 2009
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