30 de junho de 2006

Às quatro da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos ou opacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono, que os olhos baços animam de desânimo pisco: o excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêntricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e os perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?, inexistentes, inexistentes como a sua ternura por mim, esse rápido sorriso sem afecto que quase não chega a nascer, a mão quieta que aceita com indiferença os meus dedos, a coxa inerte que a minha coxa ansiosamente prime.

Trecho de "Os cus de Judas", de António Lobo Antunes.

21 de junho de 2006

Soter Bentes é o desenhista criador da sensual Múmia e do maluco Franklau. E ele tem um blog.

20 de junho de 2006

Nem só de literatura vive o homem. Recomendo a música de Erik Satie. Gosto muito de 3 morceaux en forme de poire, a 4 mains.

15 de junho de 2006

Achava belo, a essa época, ouvir um poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber a razão de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres, e até envenenados.

Trecho de Guerra sem testemunhas, de Osman Lins.

12 de junho de 2006

Questão

Acordou de madrugada. Sua mulher e seu filho dormem. Não quis ligar a televisão, tampouco o rádio. A casa está silenciosa. Não há nada para ser feito. Tudo está em ordem. Apenas perdeu o sono. Não sabe o motivo, nem deseja sabê-lo. Talvez assim seja melhor. É bom começar um novo século. A casa paga. O carro na garagem. A geladeira cheia. Nenhuma novidade, nenhum sobressalto. Mas, está tudo bem. Todos estão com saúde. É isso que importa nessa vida. Saber que todos estão bem.

Claudio Eugenio Luz

4 de junho de 2006

O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso. João Evangelista diz que as naves do Fim transportarão não identidades mas o único corpo impregnado do Um. Não me pergunte pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado não, nome também: não. Sexo, o meu sexo sim: o meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com ele-só-ele que abrirei meu caminho entre eu e tu, aqui.

Início do romance "A fúria do corpo", de João Gilberto Noll.