Às quatro da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos ou opacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono, que os olhos baços animam de desânimo pisco: o excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêntricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes, e nós que nos dirigimos para a saída do bar ao longo de um corredor de nucas e perfis cuja monótona diversidade os aproxima dos manequins da Baixa, petrificados em acenos imóveis de uma inutilidade patética, há apenas a diferença insignificante de alguns mortos na picada, cadáveres que você não conheceu, as nucas e os perfis nunca viram, os estrangeiros do aeroporto ignoravam, e que, portanto, são inexistentes, inexistentes, percebe?, inexistentes, inexistentes como a sua ternura por mim, esse rápido sorriso sem afecto que quase não chega a nascer, a mão quieta que aceita com indiferença os meus dedos, a coxa inerte que a minha coxa ansiosamente prime.
Trecho de "Os cus de Judas", de António Lobo Antunes.
30 de junho de 2006
21 de junho de 2006
20 de junho de 2006
15 de junho de 2006
Achava belo, a essa época, ouvir um poeta dizer que escrevia pela mesma razão por que uma árvore dá frutos. Só bem mais tarde viera a descobrir ser um embuste aquela afetação: que o homem, por força, distinguia-se das árvores, e tinha de saber a razão de seus frutos, cabendo-lhe escolher os que haveria de dar, além de investigar a quem se destinavam, nem sempre oferecendo-os maduros, e sim podres, e até envenenados.
Trecho de Guerra sem testemunhas, de Osman Lins.
Trecho de Guerra sem testemunhas, de Osman Lins.
12 de junho de 2006
Questão
Acordou de madrugada. Sua mulher e seu filho dormem. Não quis ligar a televisão, tampouco o rádio. A casa está silenciosa. Não há nada para ser feito. Tudo está em ordem. Apenas perdeu o sono. Não sabe o motivo, nem deseja sabê-lo. Talvez assim seja melhor. É bom começar um novo século. A casa paga. O carro na garagem. A geladeira cheia. Nenhuma novidade, nenhum sobressalto. Mas, está tudo bem. Todos estão com saúde. É isso que importa nessa vida. Saber que todos estão bem.
Claudio Eugenio Luz
Acordou de madrugada. Sua mulher e seu filho dormem. Não quis ligar a televisão, tampouco o rádio. A casa está silenciosa. Não há nada para ser feito. Tudo está em ordem. Apenas perdeu o sono. Não sabe o motivo, nem deseja sabê-lo. Talvez assim seja melhor. É bom começar um novo século. A casa paga. O carro na garagem. A geladeira cheia. Nenhuma novidade, nenhum sobressalto. Mas, está tudo bem. Todos estão com saúde. É isso que importa nessa vida. Saber que todos estão bem.
Claudio Eugenio Luz
4 de junho de 2006
O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso. João Evangelista diz que as naves do Fim transportarão não identidades mas o único corpo impregnado do Um. Não me pergunte pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do passado, nada, passado não, nome também: não. Sexo, o meu sexo sim: o meu sexo está livre de qualquer ofensa, e é com ele-só-ele que abrirei meu caminho entre eu e tu, aqui.
Início do romance "A fúria do corpo", de João Gilberto Noll.
Início do romance "A fúria do corpo", de João Gilberto Noll.
2 de junho de 2006
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