O ruído discreto mas perfeitamente audível, persistente, sorna, acompanhou-o a noite inteira, como já o acompanhara nas anteriores, como o escoltaria todas as noites em que ele deliberasse fazer serão.
Os ratos devoravam, no forro dos soalhos, dos tectos, das paredes, por entre as prateleiras cevadas de livros e de papéis, a carcaça do velho edifício e o seu venerável recheio. De dia ninguém os escutava. A voz poderosa do funcionalismo que ocupava o casarão antigo abafava todas as demais vozes, todos os rumores. O próprio público que se dirigia aos guichets, à busca de informações, ou tentava introduzir-se nas salas para tratar dos assuntos que na repartição tinham o seu expediente, fazia-o com respeito, com timidez, em fala apagada, submissa, para não dar motivo à fácil irritação dos funcionários, sempre prenhe de desastrosas consequências para os implorantes. Durante as breves horas catalogadas como "horas de trabalho", reinava, de facto, ali, essa entidade soberana - cujas decisões instituem a lei, cujo arbítrio substitui a justiça, cuja inércia é o melhor escudo contra as mutações perigosas da condição social, da sociedade e dos regimes - que constitui a grande, espraiada família do funcionalismo público.
Os ratos, intimidados pela presença dos senhores do edifício, pelo falatório, pelo ranger dos passos sobre o soalho decrépito, não ousavam chamar sobre a sua faina clandestina e corrosiva a atenção de quem lhes não convinha para inimigo. E aproveitavam essas curtas horas de humana actividade para fruir um merecido repouso. Desse modo, a soberania da velha casa se dividia, em boa paz, entre os funcionários e os ratos.
Parágrafos iniciais do conto "A história de Venâncio, segundo-oficial", que fala da desastrosa luta entre um funcionalismo ineficiente e uma manada de ratos bastante disciplinada. Foi publicada no livro "Carnaval e outros contos" (1958), do português Joaquim Paço D'Arcos (1908 - 1979).
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