Pensei nos versos de Eugenio Montale, traduzidos para o português por Geraldo Holanda Cavalcanti assim: "O mundo existe... Um espanto pára/ o coração que sucumbe aos espíritos errantes,/ mensageiros da noite: e não pode acreditar/ que homens famintos possam ter sua festa." Seguindo as novas regras, fica: "Um espanto para o coração..." O leitor provavelmente ficará sem saber o que é este "para", a não ser que esteja de posse do original e que domine o italiano. A solução será traduzir de outro jeito. O original:
Il mondo esiste... Uno stupore arresta
il cuore che ai vaganti incubi cede,
messaggeri del vespero: e non crede
che gli uomini affamati hanno una festa.
28 de janeiro de 2009
27 de janeiro de 2009
Pipoca
Dizem que depois de Lady Vingança, o último filme da trilogia da vingança, o coreano Park Chan-wook perdeu a mão. Não sei. Dele, só conheço mesmo a tal trilogia. Dizem também que esse boom do cinema coreano é uma estratégia de marketing (o fato de Quarantino divulgar e babar pelos asiáticos ajuda a fortalecer o boato). Minha opinião é que o marketing serve também para vender não só arte, mas muita coisa que presta. De qualquer maneira, eu recomendo o filme "Oldboy", de 2003, pela atuação do Min-sik Choi e pelo roteiro surpreendente.
26 de janeiro de 2009
Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, é uma espécie de continuação de Ensaio sobre a cegueira. A história se passa quatro anos após a cegueira branca ocorrida em Portugal. Acho notável como Saramago doa diálogos improváveis a determinadas personagens - mesmo uma secretária é capaz das mais complexas meditações.
Diga por favor aos jornais e à gente da televisão e da rádio que não deitem mais gasolina na fogueira, se a sensatez e a inteligência nos faltam, arriscamo-nos a que tudo isto vá pelos ares, deve ter lido que o director do jornal do governo cometeu hoje a estupidez de admitir a possibilidade de que isto venha a terminar num banho de sangue, O jornal não é do governo, Se este comentário me é permitido, senhor ministro, teria preferido outro comentário seu, O homenzinho excedeu-se, passou as marcas, acontece sempre que se quer apresentar mais serviço que aquele que foi encomendado, Senhor ministro, Diga, Que faço finalmente com os empregados do serviço municipal de limpeza, Deixe-os trabalhar, dessa maneira a câmara municipal ficará bem vista aos olhos da população e isso poderá ser-nos útil no futuro, além do mais, há que reconhecer que a greve era só um dos elementos da estratégia, e de certeza não o de maior importância, Não seria bom para a cidade, nem agora nem no futuro, que a câmara municipal fosse utilizada como uma arma de guerra contra os seus munícipes, A câmara não pode ficar à margem de uma situação como esta, a câmara está neste país e não noutro, Não estou a pedir que nos deixem à margem da situação, o que peço é que o governo não ponha obstáculos ao exercício das minhas competências próprias, que em nenhum momento queira dar ao público a impressão de que a câmara municipal não passa de mais um instrumento da sua política repressiva, com perdão da palavra, em primeiro lugar porque não é verdade, e em segundo lugar porque não o será nunca, Temo não o compreender, ou compreendê-lo demasiado bem, Senhor ministro, um dia, não sei quando, a cidade voltará a ser a capital do país, É possível, não é certo, depende de até onde queiram chegar com a rebelião, Seja como for, é preciso que esta câmara municipal, comigo aqui ou com qualquer outro presidente, jamais possa ser olhada como cúmplice ou co-autora, mesmo que apenas indirectamente, de uma repressão sangrenta, o governo que a ordene não terá outro remédio que aguentar-se com as consequências, mas a câmara, essa, é da cidade, não a cidade da câmara, espero ter sido suficientemente claro, senhor ministro, Tão claro que lhe vou fazer uma pergunta, Ao seu dispor, senhor ministro, Votou em branco, Repita, por favor, não ouvi bem, Perguntei-lhe se votou em branco, perguntei-lhe se era branco o voto que pôs na urna, Nunca se sabe, senhor ministro, nunca se sabe, Quando tudo isto terminar, espero vir a ter consigo uma longa conversa, Às suas ordens, senhor ministro, Boas tardes, Boas tardes, A minha vontade seria ir aí e dar-lhe um puxão de orelhas, Já não estou na idade, senhor ministro, Se alguma vez vier a ser ministro do interior, saberá que para puxões de orelhas e outras correcções nunca houve limite de idade, Que não o ouça o diabo, senhor ministro, O diabo não tem tão bom ouvido que não precisa que lhe digam as coisas em voz alta, Valha-nos então deus, Não vale a pena, esse é surdo de nascença.
Trecho de "Ensaio sobre a lucidez", de José Saramago.
Diga por favor aos jornais e à gente da televisão e da rádio que não deitem mais gasolina na fogueira, se a sensatez e a inteligência nos faltam, arriscamo-nos a que tudo isto vá pelos ares, deve ter lido que o director do jornal do governo cometeu hoje a estupidez de admitir a possibilidade de que isto venha a terminar num banho de sangue, O jornal não é do governo, Se este comentário me é permitido, senhor ministro, teria preferido outro comentário seu, O homenzinho excedeu-se, passou as marcas, acontece sempre que se quer apresentar mais serviço que aquele que foi encomendado, Senhor ministro, Diga, Que faço finalmente com os empregados do serviço municipal de limpeza, Deixe-os trabalhar, dessa maneira a câmara municipal ficará bem vista aos olhos da população e isso poderá ser-nos útil no futuro, além do mais, há que reconhecer que a greve era só um dos elementos da estratégia, e de certeza não o de maior importância, Não seria bom para a cidade, nem agora nem no futuro, que a câmara municipal fosse utilizada como uma arma de guerra contra os seus munícipes, A câmara não pode ficar à margem de uma situação como esta, a câmara está neste país e não noutro, Não estou a pedir que nos deixem à margem da situação, o que peço é que o governo não ponha obstáculos ao exercício das minhas competências próprias, que em nenhum momento queira dar ao público a impressão de que a câmara municipal não passa de mais um instrumento da sua política repressiva, com perdão da palavra, em primeiro lugar porque não é verdade, e em segundo lugar porque não o será nunca, Temo não o compreender, ou compreendê-lo demasiado bem, Senhor ministro, um dia, não sei quando, a cidade voltará a ser a capital do país, É possível, não é certo, depende de até onde queiram chegar com a rebelião, Seja como for, é preciso que esta câmara municipal, comigo aqui ou com qualquer outro presidente, jamais possa ser olhada como cúmplice ou co-autora, mesmo que apenas indirectamente, de uma repressão sangrenta, o governo que a ordene não terá outro remédio que aguentar-se com as consequências, mas a câmara, essa, é da cidade, não a cidade da câmara, espero ter sido suficientemente claro, senhor ministro, Tão claro que lhe vou fazer uma pergunta, Ao seu dispor, senhor ministro, Votou em branco, Repita, por favor, não ouvi bem, Perguntei-lhe se votou em branco, perguntei-lhe se era branco o voto que pôs na urna, Nunca se sabe, senhor ministro, nunca se sabe, Quando tudo isto terminar, espero vir a ter consigo uma longa conversa, Às suas ordens, senhor ministro, Boas tardes, Boas tardes, A minha vontade seria ir aí e dar-lhe um puxão de orelhas, Já não estou na idade, senhor ministro, Se alguma vez vier a ser ministro do interior, saberá que para puxões de orelhas e outras correcções nunca houve limite de idade, Que não o ouça o diabo, senhor ministro, O diabo não tem tão bom ouvido que não precisa que lhe digam as coisas em voz alta, Valha-nos então deus, Não vale a pena, esse é surdo de nascença.
Trecho de "Ensaio sobre a lucidez", de José Saramago.
21 de janeiro de 2009
Exuberante deserto
Títulos enganam a gente. Às vezes um bom título embrulha um péssimo livro ou um título horrível destrói uma obra-prima. O filme sobre o qual falarei agora é vítima deste último caso: "Exuberante deserto". Nem dá vontade de assistir, né? O filme conta a história de Dvir, que mora com a mãe e o irmão em um kibutz, aquela comunidade utópica, em que teoricamente todos devem trabalhar para o bem comum. Só que o filme revela o que na realidade é um agrupamento como esse - um lugar propício a desvios sexuais e abusos de toda espécie. Miri, a mãe de Dvir, espera a visita de seu namorado suíço, que vai chacoalhar um pouquinho o kibutz. O filme é de 2006, bancado por Israel, Japão e Alemanha e dirigido por Dror Shaul.
19 de janeiro de 2009
Li sobre o Dave Eggers faz pouco tempo e resolvi ver se o cara era tão bom quanto o resenhista vendia que fosse. O americano escreve muito bem sim, mas eu esperava mais. Um pouco do meu desapontamento eu credito à tradução. O título do livro: em inglês “How we are hungry”. Em português, ficou: “A fome de todos nós”. Aliás, gostei mais do título em nossa língua do que do original. Mas acho que toda a inspiração do tradutor acabou aí. Eggers dá uma importância tremenda aos títulos, é como se eles fizessem parte da história ou mais ainda, é como se fossem a chave para decifrar o mistério das narrativas. The only meaning of the oil-wet water ficou O único significado da água suja de óleo. Up the mountain coming down slowly acabou Descendo vagarosamente a montanha. Notes for a story about a man who would not die alone se tornou Notas à história de um homem que não morrerá sozinho. Aí me deu vontade de ler o Dave em inglês, mas ainda não consegui encontrar um livro dele por aqui e com o dólar nesses patamares, vou esperar mais um pouco para importar alguma obra do sujeito. Então que eu não fiquei satisfeito não, saí da leitura (há alguns dias, admito) com aquela velha sensação de ter perdido algo. Alguns trechos me pareceram bem forçados, quando o autor dá voz a animais e objetos, sem que no final isso tenha qualquer relação com a história. Pareceu-me que o Eggers queria mesmo só transgredir. É um bom escritor, se me permitem. Talvez eu até recomende essa obra dele algum dia a um amigo.
Vou transcrever a orelha desta minha edição (Rocco, 2007):
A fome de todos nós é uma coletânea que mescla histórias inéditas com outras anteriormente publicadas em algumas das mais aclamadas revistas literárias americanas.
Misturando narrativas lineares com tramas narradas por diversas vozes distintas, Dave Eggers consegue relatar, com maestria, desde a saga de um cão que corre para alcançar o paraíso em “Após ser jogado no rio e antes de me afogar” até uma meditação amargamente cômica sobre a amizade e o suicídio em “Subindo pela janela, fingindo dançar”. Os contos reunidos em A fome de todos nós assombram o leitor com prazeres inesperados e divagações sobre assuntos incomuns que, em seu cerne, revelam muito sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca.
Através de toques delicados e explosões de humor rasgado, o combustível desta coletânea são os tempos atribulados no qual foi escrita. A urgência e o experimentalismo que marcam a carreira de Dave Eggers desde seu primeiro livro estão, aqui, mais desenvolvidos que nunca, elevados a um novo nível de precisão e beleza, injetando vida nova a formas literárias tradicionais.
Mais do que um retrato cômico e ferino deste início de milênio, A fome de todos nós é o registro da maturidade de um dos maiores autores americanos de nossos dias.
Vou transcrever a orelha desta minha edição (Rocco, 2007):
A fome de todos nós é uma coletânea que mescla histórias inéditas com outras anteriormente publicadas em algumas das mais aclamadas revistas literárias americanas.
Misturando narrativas lineares com tramas narradas por diversas vozes distintas, Dave Eggers consegue relatar, com maestria, desde a saga de um cão que corre para alcançar o paraíso em “Após ser jogado no rio e antes de me afogar” até uma meditação amargamente cômica sobre a amizade e o suicídio em “Subindo pela janela, fingindo dançar”. Os contos reunidos em A fome de todos nós assombram o leitor com prazeres inesperados e divagações sobre assuntos incomuns que, em seu cerne, revelam muito sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca.
Através de toques delicados e explosões de humor rasgado, o combustível desta coletânea são os tempos atribulados no qual foi escrita. A urgência e o experimentalismo que marcam a carreira de Dave Eggers desde seu primeiro livro estão, aqui, mais desenvolvidos que nunca, elevados a um novo nível de precisão e beleza, injetando vida nova a formas literárias tradicionais.
Mais do que um retrato cômico e ferino deste início de milênio, A fome de todos nós é o registro da maturidade de um dos maiores autores americanos de nossos dias.
9 de janeiro de 2009
Ainda cinema
Sobre os Coen, para encerrar, eu concordo com o Luiz Carlos Merten. Amanhã postaria algo sobre um bom escritor - Dave Eggers.
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