30 de agosto de 2012
13 de julho de 2012
Tudo o que tenho levo comigo, de Herta Müller
Quando um escritor leva o Nobel de Literatura, todo mundo fica desconfiado. Porque o prêmio tem forte conotação política. Então nos perguntamos: será que existe aí alguma qualidade literária? Certa vez Daniel Piza foi muito apressado ao criticar Herta Müller, baseando-se no único livro dela lançado no Brasil até então, "O compromisso", traduzido por Lya Luft. Escrevi a ele, argumentando que ele não podia ir tão longe tendo lido apenas um romance da romena. Ficou bravo, bateu o pé e ficou por isso mesmo.
Antônio Cândido defende que uma tradução ruim não consegue matar uma boa obra. Não acredito nisso. Convenhamos que o trabalho da Luft em cima dos originais de Herta Müller quase chegou lá. Discuto há pouco com meu amigo Ronaldo Cagiano que, como escritores, temos a obrigação de conhecer profundamente uns 3 ou 4 idiomas e, superficialmente, outros 3 ou 4. Antes de ler qualquer tradução, e digo isso sem arrogância, dou uma folheada nos originais. Comparo. Se estiver tudo ok, prefiro ler em português. Então, sobre a transposição da Carola Saavedra, não há o que temer. Ela conhece bem a língua alemã e ainda consegue imprimir a sua assinatura, sem mascarar o estilo de Herta Müller. Alguns trechos ficaram confusos, quase ininteligíveis, mas anda que comprometa o conjunto.
A ressalva fica por conta do título. Parece-me que a Cia das Letras optou pela tradução do título inglês, o que é uma pena. O original "Atemschaukel" virou "Tudo o que tenho levo comigo", retirado do primeiro parágrafo do livro:
Alles, was ich habe, trage ich bei mir.
Herta Müller é uma escritora maravilhosa e este livro é uma prova disso. Primeiro, o estilo: frases curtas, secas, sonoras. Capítulos curtos, quase pequenos contos, que entrelaçados viram um romance. Um texto lírico. Enxuto? Não, de jeito nenhum. Rejeito veementemente o adjetivo. Como uma obra pode ser enxuta se trata, em suas quase 300 páginas quase exclusivamente da fome?
Li vários e vários livros que tratam do holocausto e, na minha ignorância, achei que esta obra de Herta Müller ia se ocupar deste mesmo assunto. Meu preconceito veio do fato de que considero complicada a tarefa de extrair algo de bom de um tema que já rendeu tantos e tantos parágrafos. Só que "Tudo o que tenho levo comigo" fala do pós-holocausto, da perseguição que Stálin empreendeu após o término da Segunda Guerra.
Assim, Leo Auberg, um alemão de dezessete anos, homossexual, se vê, sem motivo aparente (mais tarde descobre que faz parte de uma minoria, por isso foi punido), obrigado a passar vários anos como escravo em um campo de trabalhos forçados. Mas não há uma narrativa convencional, a história nos chega em devaneios, em momentos de extrema privação. Praticamente não existem diálogos, porque num lugar como o que Auberg cai, a intimidade pode significar fraqueza e fraqueza é sentença de morte.
No livro, o termo Atemschaukel aparece algumas vezes e é traduzido como "o balanço da respiração", o que não deixa de ser uma metáfora para esse movimento praticamente involuntário que nosso peito faz quando sugamos o ar da sobrevivência. É a metáfora perfeita para a luta de um ser humano em uma condição de miséria, porque é aí, é nesta agitação do peito que alguém se lembra de sua humanidade.
Antônio Cândido defende que uma tradução ruim não consegue matar uma boa obra. Não acredito nisso. Convenhamos que o trabalho da Luft em cima dos originais de Herta Müller quase chegou lá. Discuto há pouco com meu amigo Ronaldo Cagiano que, como escritores, temos a obrigação de conhecer profundamente uns 3 ou 4 idiomas e, superficialmente, outros 3 ou 4. Antes de ler qualquer tradução, e digo isso sem arrogância, dou uma folheada nos originais. Comparo. Se estiver tudo ok, prefiro ler em português. Então, sobre a transposição da Carola Saavedra, não há o que temer. Ela conhece bem a língua alemã e ainda consegue imprimir a sua assinatura, sem mascarar o estilo de Herta Müller. Alguns trechos ficaram confusos, quase ininteligíveis, mas anda que comprometa o conjunto.
A ressalva fica por conta do título. Parece-me que a Cia das Letras optou pela tradução do título inglês, o que é uma pena. O original "Atemschaukel" virou "Tudo o que tenho levo comigo", retirado do primeiro parágrafo do livro:
Alles, was ich habe, trage ich bei mir.
Herta Müller é uma escritora maravilhosa e este livro é uma prova disso. Primeiro, o estilo: frases curtas, secas, sonoras. Capítulos curtos, quase pequenos contos, que entrelaçados viram um romance. Um texto lírico. Enxuto? Não, de jeito nenhum. Rejeito veementemente o adjetivo. Como uma obra pode ser enxuta se trata, em suas quase 300 páginas quase exclusivamente da fome?
Li vários e vários livros que tratam do holocausto e, na minha ignorância, achei que esta obra de Herta Müller ia se ocupar deste mesmo assunto. Meu preconceito veio do fato de que considero complicada a tarefa de extrair algo de bom de um tema que já rendeu tantos e tantos parágrafos. Só que "Tudo o que tenho levo comigo" fala do pós-holocausto, da perseguição que Stálin empreendeu após o término da Segunda Guerra.
Assim, Leo Auberg, um alemão de dezessete anos, homossexual, se vê, sem motivo aparente (mais tarde descobre que faz parte de uma minoria, por isso foi punido), obrigado a passar vários anos como escravo em um campo de trabalhos forçados. Mas não há uma narrativa convencional, a história nos chega em devaneios, em momentos de extrema privação. Praticamente não existem diálogos, porque num lugar como o que Auberg cai, a intimidade pode significar fraqueza e fraqueza é sentença de morte.
No livro, o termo Atemschaukel aparece algumas vezes e é traduzido como "o balanço da respiração", o que não deixa de ser uma metáfora para esse movimento praticamente involuntário que nosso peito faz quando sugamos o ar da sobrevivência. É a metáfora perfeita para a luta de um ser humano em uma condição de miséria, porque é aí, é nesta agitação do peito que alguém se lembra de sua humanidade.
1 de junho de 2012
Algumas palavras sobre o Concurso de Contos Luiz Vilela
Talvez
os ituiutabanos não tenham uma ideia muito clara da importância do Concurso Luiz
Vilela, que, durante mais de vinte anos, premiou contistas do país inteiro. O
certame, que dava ao vencedor uma boa quantia em dinheiro, que recebia, a cada
edição, em torno de mil trabalhos concorrendo ao prêmio, levava o nome de minha
cidade natal aos cantos mais recônditos do Brasil. Digo isso com conhecimento
de causa, pois, por onde quer que eu vá, quando respondo sobre Ituiutaba, logo
já a conectam ao concurso.
Os
livros editados com os dez melhores trabalhos circulam por todos os cantos.
Recebo com frequência e-mails de gente pedindo exemplares, interessados em ler
os contos selecionados. Quando relacionam o prêmio à cidade, logo pensam que
aqui há políticos que valorizam a cultura, que reconhecem o valor da
literatura. E é fato que deve ser louvado.
Estamos
cansados de saber que uma parcela significativa da população saiu da faixa de
pobreza, alcançando o status de consumidora. Os da classe C migraram para a B,
os da B para a A, fazendo com que nosso povo tivesse acesso aos bens de
consumo, embora continue sem acesso aos bens culturais, seja por desinteresse,
seja por falta de dinheiro mesmo. Ações que saiam à captura de leitores só
podem ser louvadas.
Posso
garantir a qualquer um que venha me questionar, que os mil exemplares editados
com os dez contos vencedores alcançam uma enormidade de leitores. Um livro em
uma biblioteca, um livro lançado ao mundo, é sempre uma surpresa. Como vencedor
da edição de 2007 do Prêmio Luiz Vilela, como autor selecionado em quatro
outras oportunidades, posso afirmar que a antologia fez muita diferença em
minha carreira.
Graças
ao concurso, meu nome chegou aos ouvidos de antologistas e de pesquisadores que
se interessaram pela minha escrita. Fui convidado a participar de importantes
obras, caso da Geração zero zero, que mapeou os melhores escritores
contemporâneos da década passada. Meu nome, de boca em boca, alcançou uma
pesquisadora norte-americana, que passou a estudar meus dois últimos livros com
seus alunos de pós-graduação. De boca em boca, minha prosa encontrou uma
editora alemã, que se interessou pelo que faço e que traduzirá um texto meu
para a Feira de Frankfurt, em 2013.
Poderia
ficar aqui defendendo o concurso durante horas, mas acho que já dei uma boa
amostra do meu pensamento. Por motivos que não pretendo abordar neste texto, o
prêmio deixa de levar o nome do escritor ituiutabano mais conhecido no Brasil e
no mundo. Não tenho dúvida nenhuma que grande parte do sucesso do Concurso Luiz
Vilela se deveu ao fato de que o próprio Vilela gerenciava todos os passos do
certame. Parece-me que ficou decidido que continuará a existir um prêmio
literário em Ituiutaba, só que com outro nome. Não sei se será a mesma coisa, mas
espero que sim.
11 de abril de 2012
Anatomia, de Daniela Lima
Quando eu leio um livro realmente bom, eu penso na utilidade da minha literatura. Da minha, bem entendido. Após a leitura, um pouco de desânimo, uma pitada de prostração e eu descambo para a depressão, algumas vezes. Então eu recebo este "Anatomia", de Daniela Lima. Um livro de estreia e isso significa muita coisa, para o bem e para o mal e eu não vou repetir aqui. O fato é que a experiência nos alerta e esperamos uma obra insegura, uma prosa vacilante, alguns clichês e outros escorregões. Mas não é isso que acontece, de jeito nenhum. E posso acrescentar que o caminho que Daniela escolheu é o pior, porque parece que as pessoas não precisam mais desse tipo de arte. A literatura precisa, mas as pessoas não.
É uma obra fragmentada, tanto no espaço quanto no tempo, e só isso bastaria para ganhar a minha atenção, porque gosto de experimentos. Só que ela vai ainda mais longe, pois nos entrega uma história bonita, misteriosa, ambígua, embrulhada em um estilo lírico, suave. Não foi à toa que citei a depressão ali atrás. Logo no início do romance (?), acompanhamos o "sim" de Laetitia, em seu casamento. Sabemos, por meio da narrativa, que ela chegou até ali menos por impulso do que por preguiça de ponderar. Vamos nos casar? Sim, por que não? E assim, como se fosse um golpe de autopiedade, alimenta a sua depressão com decisões apressadas.
Notamos em cada palavra, em cada linha, o exorcismo da autora, como alguém que tenta se livrar da própria tristeza encarando-a, enfrentando-a. Escrever é sempre esse ato autobiográfico, disso não tenho dúvida nenhuma, mesmo que tentem me convencer do contrário. O que mais há na trama? Há muito de humano, de dejetos humanos, sangue, lágrima, suor, como se a essência do homem pudesse ser traduzida por aquilo que se joga fora, pelo descartável. E, lógico, sabemos que tudo é descartável, por mais que nos apeguemos a qualquer esperança.
Há também o ambiente asséptico, tudo é muito branco, como se as pessoas fossem essa aparência, que também pode machucar. Os relacionamentos são experiências conduzidas por indivíduos que desejam descobrir o limite do outro ou o seu próprio e isso, lógico, passa a ser um jogo de vale-tudo.
E é humilhando o próximo (e quanto mais próximo, melhor) que tentaremos nos livrar de qualquer coisa que pode representar expectativa e é um excelente alimento para a melancolia. Alguns capítulos são curtíssimos, uma linha. Isso é bom, nos deixa respirar um pouquinho, embora eu ache que tanto faz, quando estou lendo eu quero mesmo é perder o fôlego. Vi por aí que o foco do romance é o erotismo, mas acho bobagem. Não achei isso em passagem nenhuma. Para mim é uma história de amor. O maior amor que já existiu e que sempre existirá, que é aquele que alguém pode ter por ele mesmo. É a história do amor que Laetitia sente por ela própria.
Serviço: o livro foi editado pela Multifoco e pode ser encontrado no site da editora e nas boas livrarias a 32 reais.
Trecho:
Se eu soubesse fazer da palavra instrumento, ainda que rudimentar; se soubesse agir como alguém que não tem nada, mataria você. Seria um único grito. E: o fruto arrancado: a memória perdida amadurecendo sobre a mesa da sala. Finalmente, eu me afogaria na certeza de que nenhuma semente desta memória vingaria.
É uma obra fragmentada, tanto no espaço quanto no tempo, e só isso bastaria para ganhar a minha atenção, porque gosto de experimentos. Só que ela vai ainda mais longe, pois nos entrega uma história bonita, misteriosa, ambígua, embrulhada em um estilo lírico, suave. Não foi à toa que citei a depressão ali atrás. Logo no início do romance (?), acompanhamos o "sim" de Laetitia, em seu casamento. Sabemos, por meio da narrativa, que ela chegou até ali menos por impulso do que por preguiça de ponderar. Vamos nos casar? Sim, por que não? E assim, como se fosse um golpe de autopiedade, alimenta a sua depressão com decisões apressadas.
Notamos em cada palavra, em cada linha, o exorcismo da autora, como alguém que tenta se livrar da própria tristeza encarando-a, enfrentando-a. Escrever é sempre esse ato autobiográfico, disso não tenho dúvida nenhuma, mesmo que tentem me convencer do contrário. O que mais há na trama? Há muito de humano, de dejetos humanos, sangue, lágrima, suor, como se a essência do homem pudesse ser traduzida por aquilo que se joga fora, pelo descartável. E, lógico, sabemos que tudo é descartável, por mais que nos apeguemos a qualquer esperança.
Há também o ambiente asséptico, tudo é muito branco, como se as pessoas fossem essa aparência, que também pode machucar. Os relacionamentos são experiências conduzidas por indivíduos que desejam descobrir o limite do outro ou o seu próprio e isso, lógico, passa a ser um jogo de vale-tudo.
E é humilhando o próximo (e quanto mais próximo, melhor) que tentaremos nos livrar de qualquer coisa que pode representar expectativa e é um excelente alimento para a melancolia. Alguns capítulos são curtíssimos, uma linha. Isso é bom, nos deixa respirar um pouquinho, embora eu ache que tanto faz, quando estou lendo eu quero mesmo é perder o fôlego. Vi por aí que o foco do romance é o erotismo, mas acho bobagem. Não achei isso em passagem nenhuma. Para mim é uma história de amor. O maior amor que já existiu e que sempre existirá, que é aquele que alguém pode ter por ele mesmo. É a história do amor que Laetitia sente por ela própria.
Serviço: o livro foi editado pela Multifoco e pode ser encontrado no site da editora e nas boas livrarias a 32 reais.
Trecho:
Se eu soubesse fazer da palavra instrumento, ainda que rudimentar; se soubesse agir como alguém que não tem nada, mataria você. Seria um único grito. E: o fruto arrancado: a memória perdida amadurecendo sobre a mesa da sala. Finalmente, eu me afogaria na certeza de que nenhuma semente desta memória vingaria.
24 de março de 2012
O professor de piano, Rinaldo de Fernandes
Há escritores que gostam de nocautear. Mal começam uma luta e já tentam acertar um gancho ou um direto, para derrubar de vez o oponente e terminar com a história. É arriscado, porque o lutador se expõe e um pequeno erro pode levá-lo a uma derrota. Outros, mais pacientes, encaixam um jab de vez em quando, minando aos poucos a resistência do adversário. Vai vencendo devagar, a cada golpe e eventualmente pode levar o outro ao chão, o que não é tão importante. O que lhe interessa é a vitória e ele a constrói com calma, meticulosamente.
Rinaldo de Fernandes é o segundo tipo de boxeador. Pelo menos é a conclusão que tiro ao ler seu livro de contos "O professor de piano", lançado pela 7letras, em 2010. Não estou tentando defender que um estilo é melhor do que o outro, são apenas dois jeitos diferentes de contar uma história, ambos com suas características. Rinaldo vai tateando, testando seu leitor, entregando aos poucos a trama, deixando lacunas, dúvidas, vai encaixando um gancho aqui, outro ali.
Suas narrativas curtas seguem o conceito tradicional de conto: o roteiro se prende a curtos intervalos de tempo, as personagens são poucas, as histórias narradas em dez, doze páginas e todas têm início, meio e fim. O que, na verdade, não importa muito, pois o que vale é a poesia presente, o domínio da arte e a convicção de que a obra não é descartável. Rinaldo é, como o apresenta Regina Zilberman, um mestre do conto.
Apesar de o belo e instigante "Beleza" abrir o volume, é em "O professor de piano" que podemos começar a perceber a maestria a que Regina se refere. Em poucos parágrafos ficamos sabendo que há um plano e que só teremos mais dados à medida que formos nos embrenhando pelas páginas. É assim que Rinaldo nos hipnotiza e é assim que somos pegos de surpresa. Uma surpresa atrás da outra.
Não o espanto do nocaute, mas a paciência sobre a qual comentei no início deste texto. Depois, há outro conto, "Ilhado", uma construção perfeita. Nos colocam a par de um casal que frequenta um bar. Ele, habitante de uma ilha, ela sua namorada. E há um freguês em uma mesa próxima, que pretende ser apenas um voyeur. Não deseja se intrometer em nada. Mas é aí que o conceito de observador isento entra em ação. Ninguém é independente, há em tudo uma cumplicidade tácita, entretecida de olhares, gestos, de modo que já desconfiamos que os três se envolverão em alguma intriga.
Há o conto "Oferta", em que uma garota deseja intensamente possuir uma mochila, "Dois buracos para meus olhos, uma ficção venenosa, em que tudo parece ser suspeita, os fatos não são entregues ao leitor e o que é fato pode estar corrompido pelo álcool ou por alguma alucinação. Ainda "O caçador", em que um sujeito invade uma casa e resolve lá morar, dividindo-a com o dono, sem que ele saiba. É um jogo sutil de desencontros.
São onze contos que desafiam o leitor, que nos instigam a seguir para o parágrafo seguinte e ver o que acontece. E o que acontece é que saímos da leitura das quase cem páginas de sustos, de assombros, convictos de que a literatura brasileira contemporânea vai cada vez melhor, mas parece que o grande público ainda não se deu conta disso.
Trecho
Na faculdade, eu havia espalhado, meio idiota, que o silvo do soneto se tratava do pós-moderno. Charme, pra dizer que estava sacando o zunzunzum todo. Tentei te beijar, quando sentamos no barzinho. Você não quis. Falou que é isso. Vamos ser só amigos. Caralho! A pílula da tua indiferença direto na minha goela. Sou como um pneu - adoro o liso. Tudo que é atrito grita-me fundo. Na orelha. No peito. No cu. Que aperta na hora, e bem.
Rinaldo de Fernandes é o segundo tipo de boxeador. Pelo menos é a conclusão que tiro ao ler seu livro de contos "O professor de piano", lançado pela 7letras, em 2010. Não estou tentando defender que um estilo é melhor do que o outro, são apenas dois jeitos diferentes de contar uma história, ambos com suas características. Rinaldo vai tateando, testando seu leitor, entregando aos poucos a trama, deixando lacunas, dúvidas, vai encaixando um gancho aqui, outro ali.
Suas narrativas curtas seguem o conceito tradicional de conto: o roteiro se prende a curtos intervalos de tempo, as personagens são poucas, as histórias narradas em dez, doze páginas e todas têm início, meio e fim. O que, na verdade, não importa muito, pois o que vale é a poesia presente, o domínio da arte e a convicção de que a obra não é descartável. Rinaldo é, como o apresenta Regina Zilberman, um mestre do conto.
Apesar de o belo e instigante "Beleza" abrir o volume, é em "O professor de piano" que podemos começar a perceber a maestria a que Regina se refere. Em poucos parágrafos ficamos sabendo que há um plano e que só teremos mais dados à medida que formos nos embrenhando pelas páginas. É assim que Rinaldo nos hipnotiza e é assim que somos pegos de surpresa. Uma surpresa atrás da outra.
Não o espanto do nocaute, mas a paciência sobre a qual comentei no início deste texto. Depois, há outro conto, "Ilhado", uma construção perfeita. Nos colocam a par de um casal que frequenta um bar. Ele, habitante de uma ilha, ela sua namorada. E há um freguês em uma mesa próxima, que pretende ser apenas um voyeur. Não deseja se intrometer em nada. Mas é aí que o conceito de observador isento entra em ação. Ninguém é independente, há em tudo uma cumplicidade tácita, entretecida de olhares, gestos, de modo que já desconfiamos que os três se envolverão em alguma intriga.
Há o conto "Oferta", em que uma garota deseja intensamente possuir uma mochila, "Dois buracos para meus olhos, uma ficção venenosa, em que tudo parece ser suspeita, os fatos não são entregues ao leitor e o que é fato pode estar corrompido pelo álcool ou por alguma alucinação. Ainda "O caçador", em que um sujeito invade uma casa e resolve lá morar, dividindo-a com o dono, sem que ele saiba. É um jogo sutil de desencontros.
São onze contos que desafiam o leitor, que nos instigam a seguir para o parágrafo seguinte e ver o que acontece. E o que acontece é que saímos da leitura das quase cem páginas de sustos, de assombros, convictos de que a literatura brasileira contemporânea vai cada vez melhor, mas parece que o grande público ainda não se deu conta disso.
Trecho
Na faculdade, eu havia espalhado, meio idiota, que o silvo do soneto se tratava do pós-moderno. Charme, pra dizer que estava sacando o zunzunzum todo. Tentei te beijar, quando sentamos no barzinho. Você não quis. Falou que é isso. Vamos ser só amigos. Caralho! A pílula da tua indiferença direto na minha goela. Sou como um pneu - adoro o liso. Tudo que é atrito grita-me fundo. Na orelha. No peito. No cu. Que aperta na hora, e bem.
2 de fevereiro de 2012
Então você quer ser escritor?, de Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto não tem mais nada a provar a ninguém, já tem o seu lugar garantido no panteão da literatura brasileira. Meu pequeno comentário a respeito destes seus contos, portanto, nada pretende acrescentar à vasta bibliografia que cuida de analisar a obra do escritor paranaense. Se este texto conseguir incentivar um ou outro a ler sua obra, me darei por satisfeito.
Os contos (dezesseis, distribuídos por duzentas e poucas páginas, publicados em 2011) tratam, de um modo bem geral, da infelicidade humana, do baixo valor de mercado do orgulho e da vaidade. São narrativas construídas de acordo com o conceito clássico de conto: início, meio e fim (às vezes surpreendente). Com isso, quero dizer que Miguel Sanches Neto quer contar uma história, mas não tem uma ânsia de contar uma história, ele vai devagar, como diríamos em Minas Gerais, "comendo pelas beiradas". Ele vai tateando, rondando o leitor, como quem não quer nada e, de repente, dá o bote. Para tanto, muitas vezes divide os contos em partes, dá uma volta no passado, prepara o chão.
O título do conto de abertura dá o tom da obra: "Sangue". O leitor que se prepare para muito sangue, mas não aquele dos faroestes, dos filmes atuais de Hollywood, mas o sangue nouvelle vague, o sangue contido, que vai tingindo aos poucos um cenário outrora puro, branco. Há também carne por todo lado. A mulher que não suporta mais o cheiro de sangue e de carne (esse trauma se repetirá em outras partes do livro), as árvores submersas que um artista de uma pequena cidade utiliza para construir suas peças indecentes, a faca que quase é usada para matar uma criança, as memórias de um soldado que romantizava a guerra, o marginal que sonhava em terminar, com o pai, uma casa na árvore e outras histórias que deixam em nós uma impressão de desassossego, de vazio.
Mas eu queria falar especialmente do conto "Vestindo meu avô". Poucas vezes li um texto tão bem concebido, tão bem escrito. Confesso que saí da leitura um pouco deprimido, pensativo. Um garoto que respeitava o avô porque sempre o via com os sapatos bem engraxados. Um avô fugidio e seu cavalo cansado de longas viagens e de repente o menino que vai para a cidade grande, se esquecendo da terra natal, até o dia em que o pai lhe telefona, pedindo que venha ver o avô pela última vez. Aí, para mim, começa a genialidade do conto. O sentimento de proximidade que pai e filho tinham abandonado, é recuperado quando ambos têm de lavar o corpo sem vida do velho, de um velho degradado, que nem usada mais sapatos, mas chinelos de dedo. É uma morte pesada, crua, indigesta, como deveria ser.
"Então você quer ser escritor?" é o conto que fecha o volume e fala de um modo peculiar que a obra é coisa totalmente diferente de autor. Neste texto, Miguel Sanches Neto esmiúça as armadilhas das oficinas literárias, em que os escritores que as ministram sabem da fragilidade do talento de seus pupilos. Mostra um professor de idade, disposto a elogiar seus alunos para garantir a mensalidade e às vezes uma ou outra aventura sexual.
Trecho
Sobre uma mesa velha, no quintal, com o sol nascendo, lavávamos seu corpo. O pai queria fazer alguma coisa. o avô tinha se sujado muito. Não eram propriamente fezes, mas um líquido com sangue e células podres. Fui procurar um terno, havia um no armário. Mas encontrei apenas sapatos velhos.
Voltei para o quintal, ele continuava soltando aquele líquido podre. O pai me mandou pegar a mangueira, eu me lembrei da época em que matávamos um porco, o animal era pelado e lavado antes de ser aberto. A diferença é que agora íamos fechar um corpo. O pai apertava a barriga magra do avô, eu jogava água na mesa. Quando não saiu mais nada, fizemos a barba dele e lavamos de novo o corpo, secamos e o embrulhamos em um lençol branco. Depois de me ajudar a carregá-lo para a cama, o pai ficou no quintal limpando a sujeira, jogando terra seca no chão úmido. Eram oito horas, o sol alto, o comércio estava abrindo. Peguei o carro e saí para providenciar o enterro.
29 de janeiro de 2012
Incompleto movimento, de Alberto Bresciani
O que vou escrever aqui não é novidade. Eu carrego um caderno por onde vou - nele anoto palavras, pensamentos, reflexões, ideias. Tenho rabiscadas observações sobre quase todos os livros que li. Os que valem a pena, lógico. Quando se trata de um livro de versos, registro as palavras que mais aparecem. Nesta antologia do Bresciani, não tenho dúvidas, três palavras se repetem o tempo todo, mas nenhuma como a "pele". Assim é que eu imagino que o escritor nos dá uma dica de como ler sua obra.
Como o autor separa as cento e dez páginas da coletânea em quatro partes: "Dos gestos que transfiguram", "Dos gestos que iluminam", "Dos gestos que atordoam" e "Dos gestos que paralisam", pude ter uma ideia geral da construção que ele arquitetou.
Juntemos o gesto à pele, qual o resultado? Relacionamentos. Quando observamos, nos relacionamos. Como enxergar o que existe, como, como observadores, como interventores, agimos no mundo, modificando-o, interpretando-o? Talvez Bresciani tenha tentado não responder estas questões, mas refletir sobre elas. Abro agora o livro ao acaso, escolho um título de um poema, "Idioma" e lá está:
Nestes signos
a reinscrição do talvez
sopro que não morde
só se escreve no ar
os olhos quase podem ver
e, quem sabe, um dia desvelar
Assim segue o desejo, quase tangível. Um desejo amainado, vez ou outra por um gesto que captura uma esperança de compreensão, de descanso, como nos versos de "Cronologia":
nas mãos, entre os braços
no peito, na plenitude
dos pelos e da pele
à mira
da boca, das garras, dos dentes
Há, para mim, um recado claro: a compreensão está sempre um passo adiante, nossa tarefa é, então, persegui-la. Aí vai o poema "Opostos":
A extensa via obriga
a mãos inversas
Nem a luz é toda
brilha por prismas
Em cada foco
a distância se amplia
Nada nos une
ou decifra.
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