25 de fevereiro de 2008

Autoritárias, paralisadoras, circulares, às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga maligna, das piores que têm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas, dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos, dizemos aos indecisos, Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar estrangulamentos, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida.

Trecho do romance "A caverna", de José Saramago.

24 de fevereiro de 2008

Na página de Leia livro eu falo sobre uma das obras mais interessantes da literatura mundial: As ilusões perdidas, de Honoré de Balzac.

20 de fevereiro de 2008

Marta permaneceu no cais vendo o navio afastar-se lentamente, até não mais distinguir a fisionomia de sua mãe quebrada por um pranto súbido, irrompido no derradeiro instante da despedida, como se apenas nesse momento ela se tivesse dado conta de uma realidade que, embora preexistindo, só agora divisava claramente. Em pouco sua silhueta se foi apagando, confundindo-se com as manchas de cor dos vultos de outros viajantes, depois já não se vendo senão o bojo do navio, até que também este começou a diminuir, à medida em que acelerava a marcha em demanda à barra.
As pessoas que se aglomeravam no porto foram cedendo à lassidão do cansaço, dispersando-se vagarosamente debaixo do sol de meio-dia entre debilmente chorosas e secretamente aliviadas da prolongada tensão da despedida, recobrando a consiência da inutilidade de continuarem acenando com os lenços no ar, sentindo-se elas próprias quais trapos moles e pendentes.

Parágrafos iniciais do romance "O muro de pedras", de Elisa Lispector, Prêmio José Lins do Rego, da Livraria José Olympio Editora, em 1963; Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, em 1946.

18 de fevereiro de 2008

Qui manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego in illo. Quem come o meu corpo, e bebe o meu sangue (diz Cristo) está em mim, e eu estou nele. Se perguntarmos aos Intérpretes o entendimento destas palavras, todos respondem que significam uma união real e verdadeira, com que por meio da comunhão ficamos unidos a Cristo. Isto dizem os Expositores e os Teólogos comumente; mas eu, com licença sua, tenho para mim, que neste mistério não há só uma união, senão duas, e essas mui diferentes: uma união, com que Cristo nos quis unir consigo; e outra união, com que nos quis unir conosco. O efeito da primeira união, é estarmos unidos com Cristo: o efeito da segunda união, é estarmos unidos entre nós. Pnderemos o nosso texto: Qui manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem: Quem come o meu corpo, e bebe o meu sangue. In me manet, et ego in illo: está em mim, e eu estou nele. Reparo muito nesta duplicação de termos: ele em mim, e eu nele. Se Cristo na comunhão pretendera somente unir-se conosco, um destes termos bastava, e o outro era supérfluo. Provo. Porque para estas duas mãos estarem unidas, basta que a direita esteja na esquerda, ou a esquerda na direita. Da mesma maneira para Cristo e nós estarmos unidos, basta que nós estejamos em Cristo: In me manet: ou que Cristo esteja em nós: Et ego in illo. Pois se para explicar a união que há entre Cristo e o que comunga, bastava qualquer destes termos; porque os dobra e multiplica Cristo? Por isso mesmo. Dobra Cristo e multiplica os termos, porque também a união se dobra e se multiplica. Se a união fora uma só, bastava dizer: In me manet ou et ego in illo, mas diz: in me manet et ego in illo duplicadamente, para significar as duas uniões que obra aquele mistério: uma união imediata com que nos unimos a Cristo, e outra união mediata, com que mediante Cristo nos unimos entre nós. Notai os termos destas uniões, e vereis como são distintas. Uma união se termina de nós a Cristo: In me manet e outra união se termina de Cristo a nós: et ego in illo. Pela união que se termina de Cristo a nós, fica Cristo unido a cada um de nós, e como dividido de si: pela união que se termina de cada um de nós a Cristo, ficamos todos unidos com Cristo, e todos unidos entre nós.

Trecho do "Sermão do Santíssimo Sacramento", de Antonio Vieira. Há uma bela edição da Hedra, de 2003, em dois volumes, organizada pelo estudioso Alcir Pécora, com os principais sermões do padre.

15 de fevereiro de 2008

Meu novo livro de contos, Abismo Poente, fala sobre a vinda de Libaneses para o Brasil. Não há como fugir da pesquisa. Para quem quer conhecer um pouco do Líbano, dos conflitos que ocorrem por lá até hoje, da origem do Hezbollah, recomendo o livro (infelizmente ainda não traduzido para o português) "Lebanon - A house divided", de Sandra Mackey, de 2006. Dois trechos para vocês apreciarem o estilo da autora:

In Lebanon Phoenician was besieged by Greek, Christian was martyred by Muslin; and in the unfinished struggle for cultural dominance, Lebanese murder Lebanese ina a bloody contest for the nation's identity.

By 1400 B.C., the Phoenicians hold a monopoly on the cedar forests that covered the mountains behind the port of Byblos. Thus, emissaries of Egypt's great pharaohs trekked north to buy wood to embellish their grand public buildings, and oil and resin to preserve their dead. In time, every Egyptian death meant money in a Phoenician pocket.

9 de fevereiro de 2008

Todo escritor gosta de participar de um concurso literário, não? Um pouco pelo dinheiro, outro pelo reconhecimento e mais um tanto para testar a qualidade de seus trabalhos. Há três páginas na Internet, que são bem completas, trazem muitos editais de certames em língua portuguesa. Os três se completam: Meiotom, Encantadores de Serpente e Concursos literários, esta última uma comunidade do Orkut. Se me permitem umas dicas: não participar de concurso que exija taxa de inscrição. Normalmente este dinheiro é utilizado para bancar a edição do livro com os trabalhos premiados e ainda sobra um troco para o organizador do concurso. Não participar de concursos que premiam os três primeiros colocados e rateiam a publicação dos demais em sistema cooperativado (o organizador do concurso certamente está embolsando uma grana aí também). Desconfiar de certames que pedem tema ou número fixo de páginas.

4 de fevereiro de 2008

John Robie, um ex-ladrão de jóias, mais conhecido como "Gato", pelo seu modo silencioso e rápido de escalar telhados, é acusado de uma nova série de assaltos e precisa fugir do restaurante do amigo Bertani (Charles Vanel), onde a polícia chega para caçá-lo. Bertani pede a Danielle (Brigitte Auber) que o ajude.

Bertani - Leve o Sr. Robie até o Beach Club. O que está esperando? Faça o que lhe pedi. Rápido!

Danielle - Ok, Sr. Gato, vamos!

Robie - Danielle, por favor, não me chame assim.

Danielle - Só faço um favor por dia.

A cena está no filme "Ladrão de casaca" (To catch a thief), de Hitchcock, de 1955.

3 de fevereiro de 2008

Diálogo de “Era uma vez no oeste”, de Sergio Leone: Harmonica (Charles Bronson) diz para Cheyenne (Jason Robarts). Eles estavam medindo forças:

- Então sabe contar até dois!

Cheyenne levanta a arma até seu rosto e responde:

- Até seis, se for preciso! E talvez mais rápido do que você.

(O roteiro é do Bernardo Bertolucci.)

2 de fevereiro de 2008

Um ar de família


Felipe Fortuna


“A crítica contemporânea está realmente aparelhada de forma também contemporânea?” A pergunta, feita ao poeta Manoel Ricardo de Lima na revista Modo de Usar & Co., reflete uma incompreensão da função da crítica: afinal, esta é mesmo contemporânea quando surge no instante subseqüente ao da obra sobre a qual discorre. O exemplo da crítica de Mario Faustino é aqui lapidar: no momento exato em que analisou a obra de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo, a maioria desses poetas estava viva e exercia notável influência no seu entorno literário. Famosamente, Mario Faustino assim julgou o poeta Drummond, valendo-se da terminologia encontrada em Ezra Pound: “Não escreve a sério sobre poesia, (...) nem oralmente nem por escrito. (...) É, quando muito, um master. Não é um inventor (...).” A leitura das cartas encaminhadas a Mário de Andrade, por exemplo, indica que o crítico não estava longe de uma avaliação muito precisa sobre o alheamento do poeta mineiro quanto à evolução da poesia brasileira em sua época.

Porém, uma nova pergunta feita pela revista indica maior confusão: “Você acha que a crítica ainda segue parâmetros que a poesia de hoje põe justamente em cheque [sic]?” Em língua portuguesa, deve-se escrever xeque no lugar daquele documento bancário – mas os editores já haviam prometido “um clima de intervenção”. O que importa, no entanto, é reconhecer que a evolução da poesia (e tudo o que supostamente vier a ser questionado nessa evolução) não deverá, necessariamente, alterar o conjunto de características da crítica literária. Na análise provocadora que Décio Pignatari fez do soneto “Áporo”, de Carlos Drummond de Andrade, jamais se reclama de que um modernista escreveu um soneto, forma de resto exorcizada vigorosamente também pelos concretistas. Na resposta à pergunta, Manoel Ricardo de Lima vai ao ponto: “Não é um problema da crítica, apenas, mas também do poema, ambos como política, política sempre como um nó do real (...).”

Como se comentou anteriormente, a multiplicação de revistas e antologias literárias não vem afirmando a presença de uma tendência dominante ou de jovens poetas “com voz forte”. Paradoxalmente, reforça-se a percepção quanto à dificuldade de se constituir vida literária no país, o que já tinha sido divulgado por Mario Faustino no mesmo artigo em que avaliou tão severamente os poetas em atividade: “Vida literária, emulação, reuniões sérias, leituras de poesia inédita, troca de experiências, debates, nada disso temos. Quando se conversa sobre um poema, o mais que sai, em geral, é o ‘tá bom’, o ‘muito ruim’, o ‘é uma beleza’. Em lugar disso tudo, há o fenômeno amizade, o mesmo que se verifica em nossa administração, em nossa política: meu amigo escreve bem, meu inimigo escreve mal.”

Um dos editores de Modo de Usar & Co., Fabiano Calixto publicou Sangüínea (Editora 34, 127p., R$26), que reúne seus poemas do período 2005-2007. Era de se esperar (pois os editores prometeram “a mesma responsabilidade imposta a si mesmos”) que a produção respondesse aos princípios constantes na apresentação da revista, ou seja, o surgimento de “possíveis novas formas”. Nada, contudo, distingue os poemas do livro da corrente poética que exibe influências da canção popular (não apenas brasileira), da citação ou da alusão literária entremeada aos versos, além das técnicas de composição trazidas pelo modernismo. Num poeta tão refratário ao pedantismo (tema obcecante em poemas, artigos e entrevistas), surpreende a quantidade de citações, em três línguas, que praticamente transforma alguns dos versos em palimpsestos.

Mais significativo é perceber o que Marcos Siscar denominou “a retórica das dedicatórias” nos poemas de Fabiano Calixto, que o crítico vai explicar sem perceber que denuncia a dimensão menor dessa poesia: “Com os fios da amizade poética, explicitando laços e afinidades, Sangüínea vai tecendo um espaço comum, um ar de família, na tentativa de estabelecer comunidade.” Na apresentação do mesmo livro, mal escapando à anotação típica do colunismo social, Carlito Azevedo observa que “Fabiano Calixto é um poeta que sabe se fazer querido pelos amigos. E alguns dos belos-amaros poemas deste livro praticam um procedimento que consiste em transformar numa espécie de ‘voz off’ as vozes de amigos (...)”.

Recolho uma estrofe de “A Falta que Ela me Faz”:

ontem falei ao telefone com Carlito

(estava calçando seu All-star verde

e ia dar uma volta à Lagoa com Marilinha).

Com desenvoltura, o livro é bem o modelo endogâmico que transforma os amigos e poetas em audiência receptiva e cúmplice de um contexto já conhecido; ainda mais marcante na série de poemas reunida em “Caixa de Saída”, onde o poeta envia e-mails para algumas amistosas admirações.

Também dedica “Soneto” a Dirceu Villa, o mesmo que escreveu a seguinte crítica sobre livro em que está citado também nos agradecimentos: “Fabiano Calixto é meu amigo, o que tornaria as coisas complicadas para mim, neste exato momento, se não fosse o ótimo poeta que é. (...) Foi um dos agraciados do PAC do ano passado, e a gente agradece ao PAC por esse tipo de coisa.” Quem é a gente – um coletivo de poetas? Aqui o elogio cordial ao amigo se estende ao Programa de Ação Cultural, mantido pelo Estado de São Paulo, que subvencionou Sangüínea. Assim se fecha um ciclo: o crítico fraterno fala bem do poeta e, no caminho, também da ajuda governamental. Mas o crítico não está sozinho: ele é “a gente”. E isso é Brasil.

Lírico e ardoroso, Fabiano Calixto pergunta em “E-Mail para Paul McCartney”:

as canções

de que são feitas?

da mesma erupção de

azuis de que são feitos

os oceanos? ou

do mesmo tecido que

veste vôos de borboletas? (...)

Mais adiante, continua a indagar:

da coleção de fuzilamentos

de mulheres

como Anna Akhmátova?

Aqui a emoção fica suspensa, infelizmente, pelo erro de informação biográfica, pois a poeta russa morreu de causas naturais numa casa de repouso, havendo realizado o milagre de sobreviver a Joseph Stálin. Contra os fatos não há argumentos – mas haverá a canção?


Matéria publicada no caderno Idéias & Livros, do Jornal do Brasil, hoje, dia 02 de fevereiro de 2008.