27 de dezembro de 2005

John Robie, um ex-ladrão de jóias, mais conhecido como "Gato", pelo seu modo silencioso e rápido de escalar telhados, é acusado de uma nova série de assaltos e precisa fugir do restaurante do amigo Bertani (Charles Vanel), onde a polícia chega para caçá-lo. Bertani pede a Danielle (Brigitte Auber) que o ajude.

Bertani - Leve o Sr. Robie até o Beach Club. O que está esperando? Faça o que lhe pedi. Rápido!
Danielle - Ok, Sr. Gato, vamos!
Robie - Danielle, por favor, não me chame assim.
Danielle - Só faço um favor por dia.

A cena está no filme "Ladrão de casaca" (To catch a thief), de Hitchcock, de 1955. Nos extras, caso alguém se interesse pelo DVD, uma interessante entrevista com a neta de Alfred, em que ela conta que o avô a ajudou a fazer um trabalho para a universidade, sobre seu filme e tirou apenas nota "C". Ao contar para Hitchcock, ele lhe respondeu: "Fiz o melhor que pude." Reza a lenda...

21 de dezembro de 2005

Harmonica (Charles Bronson): Então sabe contar até dois!
Cheyenne (Jason Robarts) levanta sua arma e a mostra a Harmonica: Até seis, se for preciso. E talvez mais rápido do que você.

Cena do filme "Era uma vez no Oeste", de 1968, dirigido por Sérgio Leone e com roteiro assinado por Bernardo Bertolucci.

19 de dezembro de 2005

Até aos seis anos, Iolanda, não conheci a família da minha mãe nem o odor dos castanheiros que o vento de setembro trazia da Buraca, com as ovelhas e os chibos que galgavam a Calçada na direção do cemitério abandonado, tangidos por um velho de boina e pelas vozes dos mortos. Ainda hoje, meu amor, estendido na cama à espera do efeito do valium, me sucede como nas tardes de verão em que me deitava, à procura de fresco, num bairro de jazigos destroçados: sinto um ornato de sepultura magoar-me a perna, ouço a erva das campas no lençol, vejo os serafins e os Cristos de gesso que me ameaçam com as mãos quebradas; uma mulher de chapéu plantava couves e nabos nas raízes dos ciprestes; os badalos dos cabritos tilintavam na capela sem imagens, reduzida a três paredes calcinadas e a um pedaço de altar com toalhinha submerso em trepadeiras; e eu observava a noite avançar lápide a lápide, coagulando as bênçãos dos santos em manchas de trevas.

Este é o primeiro parágrafo do livro "A ordem natural das coisas", de António Lobo Antunes.

14 de dezembro de 2005

Dizem que nas grandes cidades não há o tipo ingênuo, a inocência... A inocência é uma propriedade, uma qualidade que passa, mas existe em toda a parte. Nas classes mais pobres, nos meios mais miseráveis é que se encontra mais a flor da inocência, exposta ao vendaval e guardando o perfume, por um prodígio. Desfolhar essa flor, violentamente, como um sátiro; não é crime - é instinto. Gozá-la naturalmente sem a intenção senão de gozar - é a natureza. Cercá-la, prendê-la, ir aos poucos aspirando-a, desfolhando pétala por pétala, com refinamento, intenção dupla, consciente e feroz - é que é monstruoso. E vocês não sabem, não podem imaginar a fúria de caçador que eu desenvolvo para as encontrar, vocês não concebem o gozo meu ao prelibar a volúpia de um beijo de virgem, um beijo sugado na boca ainda não beijada...

João do Rio (1881 - 1921), no conto "O monstro".

12 de dezembro de 2005

Estar fora do eixo Rio-SP quer dizer estar distante da agitação cultural no Brasil. Significa estar longe da roda de bar formada pelo famoso editor, pelo escritor do momento, pelo cineasta badalado, pela atriz deslumbrante ou ir ao cinema ou à padaria e não encontrar nenhum famoso. Traduzindo: as chances de conseguir um padrinho acabam diminuindo drasticamente. Poucas editoras investirão em um desconhecido sem recomendações. Além disso, há o aspecto que a própria cultura propicia: o de estar perto das últimas tendências, dos últimos movimentos. As duas capitais sugerem (ou sugeriam) vanguarda. No meu caso, estar fora do eixo me garante uma enorme incerteza de publicação. Escrevo sabendo que não tenho nenhuma garantia de que meus textos serão editados algum dia. Por outro lado, acho benéfico estar fora do burburinho, criando solitariamente, pois não recebo tanta influência assim dos escritores contemporâneos, o que me deixa bastante confortável para dizer que tento criar uma literatura que está na contramão da violência e da falta de lirismo que imperam hoje em nossas letras. Mas a Internet facilita muito a minha vida e posso ter contato com grandes autores através do e-mail. Hoje não acho um problema tão sério assim viver fora do eixo. Encaro como imprescindível, isso sim, editar no eixo. É a garantia de que nossas obras terão uma distribuição razoável e também que serão editadas com as mais novas tecnologias e por profissionais competentes.

Esta opinião aí é minha e foi utilizada na matéria feita por Carlos Herculano Lopes sobre a literatura produzida (e/ou editada) fora do mítico eixo Rio-SP.

9 de dezembro de 2005

Não gosto de citar correspondências ou mensagens pessoais, mas ontem e hoje recebi duas que merecem um pequeno agradecimento. Hoje um e-mail do poeta Álvaro Alves de Faria e ontem um telegrama do Rubem Fonseca (que mês passado me deu de presente uma edição portuguesa do Diário de um Fescenino). A ambos, pelas gentis palavras, minha gratidão. Em breve Álvaro me entrevistará para a Jovem Pan. E por falar em entrevista, ontem saiu uma matéria no Estado de Minas oriunda de um papo que tive com o escritor Carlos Herculano Lopes.

8 de dezembro de 2005

Nem o corpo

No seu bangalô,
sob o viaduto,
uma estrela
nunca salpicou o chão.
As balas dos revólveres
furaram o zinco.
Só restaram o abandono,
em sua nudez,
e umas roupas
penduradas no varal.
Ali permanecem,
tesas e encardidas,
em meio à fumaça
dos escapamentos.

Não,
ninguém as reivindicou
como herança.

Donizete Galvão. Poesia retirada do livro "mundo mudo", lançado pela Nankin, em 2003.

Este poeta mineiro, na minha opinião (mais uma vez deixo isso mto claro), é a grande voz da poesia brasileira. Digamos assim: é um poeta maior. Não está na moda (embora vira e mexe se fale dele numa Cult, numa Folha de SP) e sabe fazer versos como poucos.

7 de dezembro de 2005

Quem procurou o livro "A cidade devolvida" nas livrarias e não encontrou, eu peço desculpas, mas é normal essa demora. A obra foi lançada dia 20 de novembro! Mas agora, quem quiser, pode adquirir meus contos no Submarino. Eu prefiro comprar nesta livraria virtual porque tenho a opção de pagar do jeito que eu quero... Boleto, cartão, enfim, pra todo gosto. Eu acho ainda meio arriscado comprar com cartão, então sempre vou de boleto. E funciona!

6 de dezembro de 2005

A palavra urgente

'Outro sol' reúne os versos enxutos e burilados de Júlio Polidoro


A poesia hoje parece carecer de um suporte teórico que, além de explicá-la, a qualifique. A afinidade pessoal com certa dicção não deve ser o único norteador na análise artística. Os acadêmicos e estudiosos não conseguiram ou não quiseram acompanhar a literatura contemporânea, deixando a especulação por conta de escritores, o que desaguou num imenso hiato, representado pela carência de uma autêntica teoria literária atual. Verdade que avanços ocorreram: hoje não se considera a análise artística objeto puramente científico, mas também metafísico.
Com que então lida o crítico de poesia? Que material é este que vem sendo produzido, que difere tanto das tentativas de renovação conceitual e formal perpetradas após o movimento modernista de 22, como o poema-piada, a poesia concreta, o poema-processo, a poesia práxis, os versos semióticos? Há de fato algo novo sendo produzido no cenário da poesia contemporânea que mereça consideração? São questões ainda sem resposta.
Ao poeta, num campo em que a transgressão é quase uma exigência imposta pelos cânones da cultura, interessa o estudo das tendências já consagradas. Mas como reconhecer um transgressor? Quando é que essa infringência não passa de mera especulação? Há na poesia de Júlio Polidoro sinais desses questionamentos. Reunindo sua produção poética de 1979 a 2003 em um único volume intitulado Outro sol, com o aval da Funalfa Edições e a chancela da Nankin Editorial, Polidoro constrói versos enxutos, burilados. Nota-se a evolução do poeta de Treze poemas essenciais, o primeiro livro que integra a antologia, até A superfície do abismo, o último.
Há o homem em conflito com seu ambiente, com sua situação, como no poema Anoitece (''Sazonado/ - que verdura é o dia? -/ cão bêbado/ abotoa os cílios/ do crepúsculo''); a jornada do tempo (''posso ouvir o realejo/ de memória'', ''o futuro é essa história/ que não terei/ a quem contar'') e desde o início a pequenez do poeta, sua inutilidade frente às urgências da vida, como no poema O símbolo (''o arquiteto/ não contou esse momento/ em que me sinto inexpressivo/ sem forças para clamar/ contra o vazio''). Que força tem a poesia em um mundo tão carente de sensibilidade, mais afeito ao mercado que ao lirismo ou ao pensamento?
É um grito pertinente e inquiridor que ecoa da poesia de Polidoro, como se constata nesses versos pungentes: ''persigo da fala a plena expressão/ da sala nunca aberta o corredor/ que nos conduza ao Verbo sem autor/ e que traduza as coisas do porão'', um afronte à Palavra que tudo originou, a busca pela construção definitiva, sem ao menos saber se ela é possível.
Polidoro não se esquece do ritmo, tentando domar o verbo tanto quanto possível, como lembra Carlos Nejar, na orelha do livro: ''domina todos os ritmos com a qualidade silenciosa de se deixar também guiar por eles''. É o escritor autêntico o que conduz os versos, mas também é conduzido. O que retrata e é retratado.
Antes de tudo, Polidoro é um poeta completo, que sabe passear por diversos estilos e que encontrou sua própria voz, um ser humano que compreende a urgência da palavra. E também da vida.
Whisner Fraga, Jornal do Brasil, 06 de dezembro de 2005.

5 de dezembro de 2005

O tradutor, acredito, em hipótese alguma deve tentar "melhorar" o texto que está traduzindo. Assim é que, no romance "O estrangeiro", eu traduziria o trecho: "Il avait de beaux yeux, bleu clair, e un teint un peu rouge. Il m'a donné une chaise et lui-même s'est assis un peu en arrière de moi." assim: "Ele tinha belos olhos, azuis-claros, e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se um pouco atrás de mim." O tradutor poderia facilmente trocar o primeiro "pouco" por tanto, por exemplo. Um tanto avermelhada. Mas seria cair numa armadilha que trairia o leitor que não domina o francês. Repetir palavras em frases próximas umas das outras não é considerado coisa muito elegante... Temos de lembrar que o romance foi terminado em 1940, quando Albert Camus tinha 26 anos e publicado em 1942 (a décima-quinta edição traduzida pela Record traz em sua orelha a informação errada de que o romance foi publicado pela primeira vez em 1957. Em 1957, só para lembrar, Camus ganhou o Nobel de Literatura.) Para terminar, Camus morreu em 1960, em um acidente automobilístico.

3 de dezembro de 2005

Primeiro uma angústia indeterminada, um malestar vago, um sentimento de espera com dor, como acontece antes da inspiração poética em que sente-se "que vai acontecer algo" (estado que só pode comparar-se àquele de quem vai foder sentindo que o esperma sobe e a descarga está pronta. Dá para entender?).
Em seguida, de repente, como o raio, invadindo, ou melhor irrupção instantânea da memória, porque a alucinação propriamente dita não é outra coisa - para mim, pelo menos. É uma doença da memória, um afrouxamento do que ela encobre. As imagens escapam de você como torrente de sangue. Parece que tudo o que está na cabeça explode duma vez como os mil foguetes de um fogo de artifício, e não há tempo de olhar essas imagens internas que desfilam com fúria. Em outras circunstâncias, isto começa com uma só imagem que cresce, desenvolve-se e acaba por cobrir a realidade objetiva, como por exemplo, uma faísca que volteia e torna-se um grande fogo flamejante.

Estas são palavras de Gustave Flaubert, sobre o que ele considerava "visão poética", em correspondência para seu amigo Hippolyte Taine (Correspondance, 1859-1871). A tradução do trecho foi retirada do livro Universo da Criação Literária, que saiu em 1993 pela Edusp. O prefácio da obra é de Alfredo Bosi e trata, basicamente, da crítica genética.

1 de dezembro de 2005

(...) Quando há neblina na pequena estrada do Nordeste e os passos de alguém, aí, se assemelham a um ruído de pedra em toda a solidão das colinas verdes rasantes ao mar, à tristeza, ao mar outra vez, porque é o mar que aparece permanentemente nos sonhos - o mar e o medo, um medo grandioso como a vida toda que desaparece em cada cadáver que alguém cataloga.

Trecho do romance "As duas águas do mar", do português Francisco José Viegas. A Record, que lançou o livro aqui no Brasil rotulou o livro de Policial. Só por isso eu jamais o compraria. Mas a editora me mandou um exemplar de cortesia e eu descubro que é um baita dum livro. Vai muito, mas muito além dos clichês do gênero. Um detetive e um assassinato são meros detalhes em meio a tanta poesia. Importante: a edição foi apoiada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Não entendo por que aqui no Brasil nenhuma instituição nem o governo dão a mínima para o fato de nossa literatura ser desconhecida no resto do mundo. Não se iludam, nem Rosa nem Clarice nem Machado foram tão traduzidos assim. E nos países em que foram, ocuparam (ainda ocupam) o limbo das livrarias e poucas prateleiras de intelectuais.